Na última semana, nenhum brasileiro escapou da irresistível “novela Neymar”, contada em detalhes por todas as emissoras televisivas. Desde que a denúncia da modelo Najila Trindade Mendes de Souza, que o acusou de estupro, veio à tona, todos os veículos beberam, sedentos, de cada pequena novidade acerca do caso, que continuam sendo oferecidos para que a audiência possa espiar de camarote estas duas tragédias cotidianas: a de uma mulher que teria sido abusada sexualmente num encontro casual, e a de um ídolo que vê boa parte de sua reputação desmoronar em frente aos seus olhos.
Se tem alguma coisa boa surgida de tudo isso, acredito que esteja no fato de que uma pertinente discussão sobre cultura do estupro tenha adentrado nas agendas midiáticas. Muitas pessoas – especialmente homens – não têm clareza que o estupro pode ser mais sutil e próximo do que aquela ideia estereotipada do “homem com máscara de esqui que encurrala uma mulher num beco escuro” (sobre esse tema, sugiro fortemente a leitura do livro Missoula, de Jon Krakauer). O estupro pode acontecer em qualquer momento – inclusive, depois de uma mulher ter aceitado estabelecer uma relação sexual com um homem, mas ainda assim acabar voltando atrás. Neste sentido, creio que há algo de muito corajoso e mesmo desbravador na primeira entrevista cedida por Najila, ao jornalista Roberto Cabrini, do SBT, quando diz abertamente que foi a Paris com a intenção de fazer sexo com Neymar.
Afora o florescimento da discussão sobre estupro, toda a cobertura jornalística tem sido excessiva, irresponsável, e mesmo antiética.
Afora o florescimento dessa discussão, no entanto, toda a cobertura jornalística tem sido excessiva, irresponsável, e mesmo antiética. Ainda que haja interesse público naquilo que o caso trata – o conceito abrangente de estupro e o consequente esclarecimento disso à população –, o fato não deixa de ser um perfeito fait divers, ou seja, um assunto “circular”, em que o espetáculo em si é o motivo para ser recontado de modo incansável. Em outros termos: a exploração diária de cada novidade desse caso ocorre porque há um forte teor de bisbilhotice, de voyeurismo na intimidade de alheia. Eu acrescentaria: há inclusive um certo prazer pornográfico ofertado ao público num caso em que o sexting é um dos ingredientes do cardápio.
Por tudo isso, considero repulsiva a postura das emissoras televisivas desde o início deste caso. As matérias veiculadas diariamente têm sido apressadas, oportunistas e levianas. Assim que a denúncia veio à público – o que se deu, sobretudo, na internet – as TVs acolheram, sem evidenciar grande questionamento, a “resposta” de Neymar: ele gravou um vídeo que postou em suas redes sociais no qual prometia “expor tudo” o que aconteceu para limpar sua barra, e para isso decidiu escancarar todas as conversas mantidas pelo WhatsApp com Najila.
A atitude do jogador, em si mesma, é antiética e criminosa. Antiética pois Neymar tornou públicas conversas mantidas em ambiente privado; criminosa pois divulgou fotos íntimas sem consentimento da pessoa retratada. Ao reproduzir todo esse conteúdo incessantemente em suas transmissões, as emissoras tornam-se cúmplices dessa postura condenável. Se não bastasse que Neymar – numa ação que sugere desespero, obviamente, mas também uma estratégia midiática calculada, como sugere o oportuno artigo do jornalista Ricardo Feltrin sobre uma chamada “Neymar Corp” – protagonize a devassa em sua vida íntima e na de outra pessoa, numa espécie de porn revenge, os veículos de comunicação, de forma irresponsável, seguem reiterando esta superexposição, a cada dia que passa.
Seria cômico, se não fosse trágico: coube a repórteres importantes a ingrata tarefa de ler, em pleno Jornal Nacional, conversas de sexting (mensagens de celular com conteúdos sexuais) como “eu valho por quatro mulheres, meu amor, e as quatro querem te dar prazer, não se preocupe”, ou então “falta pouco pra eu beijar esse corpo todo”. Configura, no mínimo, um momento embaraçoso nas suas carreiras. Mas ainda assim, para além do cômico, há um leviano sensacionalismo na apresentação desse “jogral” de falas de WhatsApp como se nós, a audiência (tanto quanto a polícia) tivéssemos capacidade – e mesmo autoridade – para julgar qualquer coisa que ocorreu.
Por fim, o caso talvez traga uma lição importante à televisão e ao jornalismo: como produzir coberturas idôneas em tempos em que a vigilância é onipresente? O acontecimento gerou um verdadeiro “Neymargate”, em que ninguém sabe o que aconteceu, mas as pistas estão por todos os lados: nas conversas de WhatsApp, nos vídeos feitos pelos celulares, no testemunho dos envolvidos. Tudo se tornou quase um jogo, em que ninguém sabe nada, mas todos têm uma opinião a dar. Um verdadeiro entorpecimento midiático, no qual as emissoras agem não como promotoras da verdade, mas sim comparsas em uma série de delitos.