Na semana passada, em uma edição comemorativa do dia das mulheres, o programa Roda Viva levou à bancada a atriz Taís Araújo, nome icônico da dramaturgia e do entretenimento brasileiro, responsável por uma série de marcos – um deles é que foi a primeira mulher negra a ser protagonista de uma novela das 8 da Globo (fato ocorrido em Viver a vida, novela de Manoel Carlos, de 2009). Mas não só isso: Taís, ao longo de suas décadas de trabalho na TV, teatro e cinema, tem se mostrado uma notória ativista a reivindicar representatividade às mulheres pretas.
Sua entrevista, interessantíssima, merece ser assistida por todo mundo que gosta de TV. Neste texto, quero destacar, em especial, uma discussão que ela levanta: as formas pelas quais as mulheres foram (e são) tratadas na televisão, ao longo de sua história, como peça essencial à produção de entretenimento.
Os mais jovens talvez não lembrem, mas Taís Araújo começou muito jovem na TV. Aos 17 anos, ela foi a estrela da novela Xica da Silva, exibida pela Manchete em 1996. A trama contava a história de uma escrava, vendida a um contratador, que acaba se casando com ele e se tornando rica e poderosa. Xica da Silva foi um sucesso arrebatador na Manchete, durando 231 capítulos e gerando vasta repercussão. Curiosamente, a novela foi reprisada posteriormente, em 2005, no SBT.
Lembrada por suas cenas fortes e por sua acurada reconstituição histórica, Xica da Silva também chamou muito público por causa de passagens explicitamente sexuais.
Lembrada por suas cenas fortes e por sua acurada reconstituição histórica de Minas Gerais em tempos coloniais, Xica da Silva também chamou muito público por causa de passagens explicitamente sexuais – seja de abusos sofridos pelas mulheres, seja por cenas de sexo protagonizadas por Xica e outras personagens.
Inclusive beirando a espetacularização: como Taís tinha 17 anos no início das gravações, havia uma expectativa de quando ela completaria 18 anos e poderia finalmente aparecer nua na novela. Conforme lembrou na entrevista do Roda Viva, havia uma contagem regressiva, nos telejornais da Manchete, esperando seu aniversário.
Durante a entrevista no programa, Taís Araújo relata detalhes sobre como foi gravar a novela, sempre escoltada pela sua mãe. Ao ser questionada sobre isso, ela narra: “ela estava ali do meu lado o tempo inteiro. Eu acho que ela tinha uma falsa imagem que aquilo fazia parte do processo. Se a gente voltar nos anos 90, o que a gente via da exposição da mulher era uma loucura”.
Em sua fala, Taís levanta um ponto relevante: o quanto um discurso é sempre fruto do seu tempo. Isso quer dizer que, durante o tempo de produção da novela, certos “protocolos” destinados às mulheres, como topar aparecer nua na TV, eram entendidos como normais, pois faziam “parte do jogo”.
Vale lembrar que esse período descrito pela atriz – os famigerados anos 90 – é hoje conhecido como o que houve de mais trash na TV brasileira. Foi a época em que as emissoras abertas travaram uma guerra por audiência nos domingos à tarde, levando, por exemplo, à exposição contínua de bizarrices, como o Domingão do Faustão exibindo celebridades comendo sushi em cima do corpo de uma modelo nua.
Walter Avancini, o diretor de Xica da Silva, também ficou conhecido por causa do processo tenso pelo qual essa novela foi forjada – há vários relatos de quanto a própria Taís Araújo brigou com o diretor e o autor, Walcyr Carrasco, para não gravar certas cenas. Estes abusos durante a produção da novela não envolveram apenas a protagonista: ficou famosa a cena fortíssima em que a personagem de Adriane Galisteu era estuprada na novela – experiência que ela descreveu posteriormente como traumática.
A questão sobre o quanto vale a pena se submeter em nome da arte é polêmica e complexa. Obras cinematográficas consideradas de qualidade, como Azul é a cor mais quente, do diretor Abdellatif Kechiche, perderam valor depois que as atrizes descreveram ter sofrido abusos para gravar as cenas. Ressalto, aliás, que a própria Taís, mesmo relatando ter passado por coisas em Xica da Silva que hoje considera inacreditáveis, descreve mais adiante no Roda Viva Walter Avancini como um grande professor.
Vale a pena mencionar, inclusive, que a própria novela da Manchete é alvo de muita discussão, pois apresentava uma mulher negra empoderada, que se vingava de sua opressão, mas que usava o corpo como “arma”. Nas reportagens da época, como esta de Daniel Castro em 1997, o embate sobre a representatividade feita por Xica se reflete: a escrava deveria seduzir os homens pelo sexo ou pela inteligência?
Nas respostas de diretor e escritor, um argumento que, se formos honestos, tem seu fundamento: “seria ingênuo pensar que uma mulher negra, no garimpo, atraísse o homem mais rico do momento sem passar pela cama”, diz Walcyr Carrasco na reportagem da Folha. Ou seja, a busca de realismo é argumento suficiente para retratar uma Xica hipersexualizada?
Não há resposta fácil para todas estas questões – como a que envolve os “sacrifícios” as quais os artistas, não só as mulheres, devem ou podem se submeter em nome da arte. Por isso, vale encerrar esse texto com uma fala esperançosa: que bom que os discursos, como as ondas do mar, vão e voltam, retrocedem e avançam. Se hoje podemos falar com muito mais clareza sobre abusos (relembro aqui que o “estupro dramatúrgico” de Adriane Galisteu em Xica da Silva foi motivo de piada na coluna de José Simão, algo que hoje seria escandaloso) é porque a TV nunca passa impune ao que circula no mundo.
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