Poucos episódios remetem tanto à essência do jornalismo quanto as tragédias. Basicamente, tragédias são acontecimentos inesperados, que rompem a normalidade, e demandam de uma reação rápida. Logo, cada vez que ocorre uma, os veículos jornalísticos são instados a relatá-la sob a égide cruel da pressão do tempo.
As mortes trágicas da cantora Marília Mendonça e de membros de sua equipe após a queda do avião em que estavam são exemplos de como esse tipo de acontecimento é desafiador. Os veículos profissionais da comunicação, como as emissoras e os portais, são o local para o qual a população tende a correr em busca de alguma informação que a tire da incômoda sensação do não saber. Por isso, é preciso que eles ajam quase como se estivessem executando uma prova: devem verificar o que aconteceu e traduzir ao público em um minguado espaço de tempo, para não perder a audiência a outros canais.
O relato do primeiro dia desta tragédia (5 de novembro) já ganhou muito destaque por seus equívocos. O primeiro desses erros foi a “barriga”: assim que se soube da queda do avião, logo surgiu a “notícia” (entre aspas, pois, aparentemente, a informação foi veiculada sem apuração) de que seria um acidente sem vítimas, e todos os tripulantes teriam sido resgatados. Nesse momento, podemos dizer que o jornalismo profissional, ao confiar num dado enviado pela assessoria de imprensa (e um questionamento honesto: haveria como fazer diferente nesse momento?), prestou um desserviço à população.
Passado esse momento inicial, quando a tragédia foi confirmada, surgiu a que talvez seja a parte mais desafiadora: preencher a agenda com informações que, mais uma vez, se prestem a várias funções. A primeira, claro, é seguir trazendo novidades e explicações. A segunda é trazer algum conforto às pessoas, com homenagens e recapitulações da carreira da cantora, querida pelo Brasil todo. A terceira, conforme já dito, é manter o espectador ligado na mesma emissora (e aqui vale lembrar: as emissoras privadas, com funcionamento comercial, dependem de bons níveis de audiência para pagarem suas operações).

E como isto foi feito nos primeiros dias? O que vimos foi muita especulação e espetacularização. O mais chocante foi a exibição das cenas do local do acidente, em cobertura em tempo real que mostrava a retirada dos corpos do avião bimotor. Ainda que os corpos não tenham sido exibidos, pode-se ver um pedaço da roupa da cantora – o que, de maneira mórbida, confirmou aos mais observadores de que a notícia de que ela estava bem era falsa.
Os veículos profissionais da comunicação, como as emissoras e os portais, são o local para o qual a população tende a correr em busca de alguma informação que a tire da incômoda sensação do não saber.
Muita gente lembrou, neste dia, de outra tragédia bastante conhecida e parecida com esta – a queda do avião que levava a banda Mamonas Assassinas, em 1996, que estava no auge de uma carreira bem-sucedida, tal como Marília. A cobertura também ficou marcada pela sede dos veículos jornalísticos em prender espectadores e leitores às imagens fortes, sejam fotos ou montagens (como as que editavam o mascote da banda, que era uma mamona, coberto de sangue). Na época, no entanto, as mídias estavam em outro patamar (não havia celulares, por exemplo, e o alcance da cobertura era bem mais limitado).
Por isso, nestes 25 anos que separam as duas tragédias, há uma espécie de choque em notar que há pouco contraste que documente alguma evolução. Há mais de duas décadas de avanços jornalísticos, mas os veículos ainda parecem pouco preparados para lidar com acontecimentos terríveis, que demandam decisões rápidas.
Por fim, destaco um ponto que talvez seja tangencial a tudo isso, mas que acredito ter bastante importância aqui. O relato inicial, vindo de uma assessoria de imprensa, era, como sabemos, falso: garantia que Marília Mendonça e sua equipe haviam sido resgatados e estavam em um hospital. A questão que mais me inquieta, até o momento, é: por que a assessoria fez isso?
Me remeteu a outro pequeno episódio recente, relatado pelo jornalista Leo Dias. A mãe de uma das participantes de A Fazenda 13, Mileide Mihaile, recebeu um diagnóstico de câncer avançado no útero. Frente a isso, a assessoria de imprensa da influencer estaria analisando o que fazer – se reivindicaria, por exemplo, que ela seja informada da notícia, o que pode levá-la a desistir do programa, e perder a chance de ganhar o prêmio (Mileide é uma das favoritas).
Os dois episódios, em minha visão, se conectam na ideia de que é preciso repensar para que servem hoje as assessorias de imprensa, cada vez mais profícuas em tempos de influenciadores individuais. Se a função das assessorias é, prioritariamente, proteger os interesses de seus clientes, é preciso discutir qual interesse é esse (você abriria mão de 1 milhão de reais para acompanhar sua mãe em um duro tratamento de saúde?) e, sobretudo, como deve ser a relação que as empresas jornalísticas, como as emissoras de TV, precisam manter com elas.
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: pix@escotilha.com.br. Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.