Há cerca de duas semanas, um triste episódio repercutiu nas redes e nas conversas face a face: o comentário ao vivo feito pelo apresentador Rodrigo Bocardi Bom Dia São Paulo, durante uma interação com um rapaz negro que esperava para embarcar em um metrô. Bocardi estava em estúdio enquanto o repórter Tiago Scheuer entrevistava os transeuntes. Ao ver o entrevistado, negro, Bocardi perguntou se ele iria catar bolinhas de tênis no clube Pinheiros, e ouviu prontamente a resposta de que o moço é, na verdade, atleta de pólo aquático (veja a cena aqui).
Imediatamente o episódio reverberou em todas as instâncias, levantando um debate sobre racismo estrutural – se haveria ali uma manifestação do que se chama de racismo estrutural, que é a discriminação racial impregnada na cultura e dificilmente reconhecida como tal. Isso acontece, aqui no caso, quando Bocardi identifica um negro e seu raciocínio o associa a uma função subalterna (o ajudante, no caso o gandula) e não com uma função tida como superior (que aqui seria o atleta a quem o gandula atende). Por isso, é bastante evidente que a reação de Rodrigo Bocardi revela sim um racismo introjetado, que escapa por meio de suas palavras irrefletidas – e sua fala, por isso mesmo, traz à tona uma discriminação que, mais do que pessoal, é social.
Muito já foi dito sobre o caso – que, para além de uma gafe, aponta a um escape complexo de uma mentalidade do mundo social – e, por isso, eu sugiro aqui ampliar o escopo para outro aspecto: a concepção generalizada das emissoras televisivas de que seus jornalistas não entregam apenas notícias, mas devem também entregar “humanidade”. Devem ser simpáticos, sorridentes, devem parecer próximos dos espectadores e fazer comentários que exprimam seus “sentimentos” (isso quando não se envolvem em cenas emotivas).
De modo geral, esta é uma constante em praticamente todos os canais: espera-se que apresentadores e repórteres, em maior ou menor medida, liguem-se pessoalmente com o mundo que exibem na tela. Disto decorre uma vasta quantidade de cenas que antes não víamos na TV – apresentadores que fazem comentários espontâneos e revelam suas entranhas mais do que queriam, como Bocardi, mas também repórteres que dançam e cantam em shows, que fazem piadas, que elogiam os espectadores, que gastam tempo do telejornal lendo comentários da audiência que nada acrescentam às notícias. Muitas vezes, o constrangimento na cara destes profissionais é visível.
Em prol de uma maior proximidade com o espectador, que se sente “abraçado” pela emissora que assiste, faz-se uso de uma suposta interatividade que nada agrega de valor ao jornalismo.
Alguns autores já chamaram esse tipo de estratégia – hoje onipresente nas diferentes emissoras – de “marketing da interação”. Em prol de uma maior proximidade com o espectador, que se sente “abraçado” pela emissora a que assiste, faz-se uso de uma suposta interatividade que nada agrega de valor ao jornalismo. Serve, justamente, para fins de marketing, tornando as figuras das emissoras mais simpáticas e mais próximas da audiência, explorando a lógica das celebridades. Julga-se o profissional pelo pessoal, apagando o fato de que o serviço que os jornalistas prestam (ou deveriam prestar) não é a amizade.
O leitor deste texto talvez possa estar pensando: ora, os jornalistas não comentaram sempre as notícias e compartilharam suas impressões durante os telejornais? Talvez remeta aqui à figura do âncora, tradicionalmente entendida como a do apresentador que contextualizava e interpretava os fatos que o jornal exibia. No entanto, a tônica era o comentário sobre a notícia, supostamente carregado de uma análise sólida, e não o compartilhamento de impressões pessoais. Ainda assim, vale lembrar que Boris Casoy, talvez o mais famoso âncora do telejornal brasileiro, também já pagou o preço por fazer seus comentários espontâneos ao vivo.
Há quase cinco anos, esta reflexão foi feita aqui na Escotilha em um texto intitulado “Por que queremos ser amigos da moça da previsão do tempo?”. Na época se falava de uma “tiagoleifertização do jornalismo”, que fez ascender um estilo de jornalismo bem-humorado e piadista que foi imitado por outros profissionais. Curiosamente, ele e outros jornalistas (como Fernanda Gentil e Patrícia Poeta) acabaram migrando para o entretenimento – o que não deixa de demonstrar que essa premissa do “jornalismo simpatia” estabelece uma relação pouco direta com o noticiário, e não por acaso, estas pessoas acabaram se tornando referências noutra área. De todo modo, um fato é certo: cobrar jornalistas para que sejam simpáticos e agradáveis é, bem no fundo, um sintoma da precarização de seu ofício.
Por isso, é verdade que Rodrigo Bocardi fez um comentário muito infeliz e que trouxe à público um racismo que ele provavelmente nem reconhece que tem. Mas não há como fechar os olhos para o fato de que temos aqui mais um profissional estimulado (quando não constrangido) a um tipo de performance que não deveria ser a sua.