Qualquer pessoa com o mínimo discernimento consegue se dar conta que o fascínio causado pelo esporte – especialmente pelo futebol, no Brasil – não diz respeito (apenas) ao próprio esporte. Quando falamos do jogo, nunca é só sobre o jogo que falamos. Já dizia Nelson Rodrigues que só os idiotas veem as partidas de futebol em termos estritamente táticos. Daria para acrescentar: só os idiotas não se dão conta que, se gostamos tanto da narrativa sobre o esporte, é porque ela mexe conosco e toca em coisas muito mais profundas do que o mero relato sobre uma competição.
As figuras do futebol, por exemplo, configuram como semideuses que nos põem em contato com uma mitologia compartilhada por nós. Como toda narrativa mítica, esses heróis nos contam histórias que falam de algo que pertence a todos. No Brasil, em que o futebol é uma espécie de sonho coletivo da população, os poucos “escolhidos” para adentrar neste panteão parecem trazer consigo um tanto de talento, mas muito também de destino. É como se acreditássemos que os jogadores, pelas vidas incríveis que puderam trilhar, carregam algumas verdades que nos interessam.
Isto posto, comento aqui um episódio veiculado no programa Conversa com Bial, que tem sido um espaço televisivo de bastante qualidade. Com boas pautas, entrevistados interessantes e discussões densas, a atração tem se revelado um reduto para debates inteligentes e que agregam informações relevantes a quem a assiste. Na semana passada, ao meio de vários nomes de peso da cultura, Pedro Bial reservou uma edição para um entrevistado que, talvez, poderia ser considerado inadequado ao perfil “erudito” do programa. Falo do jogador Adriano, o “Imperador”, apelido que ganhou quando jogava na Itália, na Inter de Milão, e que se encarregou de o inscrever entre os grandes.
A entrevista de Adriano, de fato, fez jus à sua força enquanto um personagem importante da mitologia esportiva brasileira. Se as figuras do esporte significam alguma coisa dentro dessa mitologia, em alguma medida, Adriano representa o herói caído, alguém que vivenciou a ascensão, a glória e a queda e, por tudo isso, tem alguma sabedoria para compartilhar. Adriano é como Quíron, o centauro que, na mitologia grega, é capaz de curar justamente por ser, ele mesmo, acometido por uma ferida que não se cura. Em suma, a história daqueles que sofrem é capaz de nos ensinar algo de importante.
A tragédia de Adriano tem um fundo moral: é a história de alguém de talento, vindo da periferia, a quem foi oferecido o mundo. No entanto, enfrentou uma série de provações: a perda do pai o levou para uma depressão que o fez perder o gosto de jogar e optar por largar o posto “aristocrático” que ocupava na Itália. As tentações mundanas (mulheres, drogas, bebida, relacionamento com pessoas do tráfico e qualquer outro elemento que se queira colocar aqui) acabaram por tolher uma carreira que tinha tudo para ser grandiosa. Adriano, portanto, encarna nesta narrativa a figura do herói caído, que desce ao inferno e retorna com uma espécie de sabedoria para contar.
Fascinante, a entrevista de Adriano exerce uma espécie de hipnose mesmo para quem não se interessa muito pelo futebol, como esta colunista, e nos faz compreender um pouco mais sobre a relação que temos com o jornalismo esportivo.
Entrevistador de talento, Pedro Bial tem a sagacidade de direcionar a conversa justamente nesse sentido, de resgatar a riqueza que há na narrativa de alguém que, em termos acadêmicos, é simples (tentando se esgueirar de perguntas difíceis, Adriano brinca durante a entrevista, meio constrangido, que reprovou três vezes a quinta série), mas cuja história – e consequente, a sabedoria que carrega – é grandiosa. No entanto, de forma discreta, Bial vai também fazendo perguntas difíceis ao jogador (confronta-o com notícias negativas sobre ele que saíram na imprensa, como a relação com traficantes e denúncias sobre agressões a ex-mulheres), que tenta respondê-las, ainda que esteja visivelmente tenso.
Aos poucos, a entrevista de Bial tece justamente uma narrativa mítica por meio daquilo que pergunta ao “Imperador”. Ele indaga, na cara dura, como é saber que, por suas próprias escolhas, ele poderia ter sido muito maior do que de fato foi. Adriano demonstra certa humildade na postura (uma qualidade que só carregam aqueles que caíram) e responde algo como: é difícil conviver com essa verdade quando põe a cabeça no travesseiro, mas as coisas são como têm que ser. Diz Adriano: “a gente não escolhe, as coisas foram acontecendo, e tudo isso aconteceu”. Tal como um Édipo, Adriano está fadado a um destino sobre o qual não tem como escapar, como se houvesse uma narrativa pré-escrita a ele. A vida é como ela é e cabe a cada um lidar com as intempéries de sua jornada particular.
Fascinante, a entrevista de Adriano exerce uma espécie de hipnose mesmo para quem não se interessa muito pelo futebol, como esta colunista, e nos faz compreender um pouco mais sobre a relação que temos com o jornalismo esportivo – especialmente quando ele é bem feito, e não simplesmente dado a clichês fáceis. Afinal, se os esportistas são heróis, o são justamente porque são falhos, incompletos (a história de Adriano, aliás, é a história do inacabado, de uma trajetória que ainda espera completar o seu sentido) e, paradoxalmente, humanos. Ponto para o Conversa com Bial que, ao trazer o Imperador para o seu palco, consegue nos lembrar de tudo isso.