A televisão descobriu que os livros de Margaret Atwood carregam um peso crítico que faz muito mais sentido hoje do que quando as obras foram publicadas originalmente, o que é muito triste. Depois de a Hulu ter acertado em cheio com a adaptação de O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale) – possivelmente a melhor série do ano –, o canal canadense CBC resolveu adaptar em forma de minissérie outro livro, de 1996, chamado Vulgo Grace. Depois de ser exibida por lá, a Netflix adquiriu os direitos de distribuição mundial, o que é uma ótima oportunidade para vermos [highlight color=”yellow”]mais uma série que grita avisos de que vivemos em tempos retrógrados.[/highlight]
Baseada em uma história real, Alias Grace conta a vida de Grace Marks (a excelente Sarah Gadon), uma jovem irlandesa de classe média baixa, que viaja com a família para tentar a vida no Canadá. Depois de ver sua mãe morrer durante a viagem de navio até o país, ser abusada pelo pai e viver diversas injustiças nas casas de patrões, que viam as empregadas domésticas como servas e nada mais, Grace é contratada para trabalhar na casa de Thomas Kinnear (Paul Gross), dono de uma fazenda num lugar afastado do Canadá.
Grace é condenada à prisão perpétua, acusada pelo assassinato brutal do seu patrão e da governanta da casa, Nancy Montgomery (Anna Paquin). A sociedade da época, na verdade, não tinha certeza se Grace de fato matou os patrões ou foi enganada por James (Kerr Logan), o rapaz que trabalhava nos estábulos. Por isso, passados 16 anos desde a prisão, o médico psicólogo Simon Jordan (Edward Holcroft) é chamado por algumas pessoas influentes de Toronto para analisar Grace e descobrir se a mulher é de fato culpada pelos crimes ou não, a fim de que o Estado a perdoe.
![Sarah Gadon em atuação inteligente Sarah Gadon em atuação inteligente](http://www.aescotilha.com.br/wp-content/uploads/2017/11/Alias_Grace_Netflix-1024x576.jpg)
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É fácil comparar Alias Grace com The Handmaid’s Tale, mas apenas porque se trata da adaptação de uma obra da mesma autora e por trazer algumas características semelhantes, como a narração em off da protagonista e o uso de chapéus com viseira. Mas, diferentemente da série da Hulu, Alias Grace traz uma narrativa menos urgente e mais reflexiva. Com maestria, a minissérie utiliza alguns tempos mortos para dar um respiro à história e aproveitar [highlight color=”yellow”]as excelentes análises presentes no texto de Atwood.[/highlight]
A série, escrita por Sarah Polley e dirigida por Mary Haron (portanto, realização de duas mulheres, diferentemente de The Handmaid’s Tale), também fala sobre a dominação masculina branca sobre a vida feminina, mas exige do público um senso crítico maior, já que a história é bastante dúbia. Não sabemos claramente a postura de Grace, se ela de fato matou os patrões ou se foi apenas envolvida, mas não é isso que importa. Ao ser abusada, subjugada e humilhada por diferentes homens ao longo da vida, Grace aprendeu a usar o patriarcado a seu favor como instinto de sobrevivência. Assim, ela utiliza certas técnicas para agir da forma como os homens esperam, a fim de ter um pouco de controle na sua própria narrativa.
É deprimente dizer, de novo, que a produção é absurdamente atual, mesmo sendo baseada num romance de 1996, que conta uma história de 1843.
[highlight color=”yellow”]Essa incerteza acaba sendo um palco especial para Sarah Gadon mostrar seu talento como atriz.[/highlight] Tal como The Handmaid’s Tale, a minissérie trabalha muito com planos fechados e expressões faciais da protagonista, permitindo a Gadon um trabalho fascinante. Quando a história nos leva a flashbacks, Grace é inocente e ingênua, para logo depois se mostrar raivosa, inteligente e autossuficiente. O episódio final, aliás, é perturbador quando a atriz muda completamente de postura, entregando uma performance medonha (no bom sentido) e que causa arrepios no público.
É essa dinâmica que torna a Alias Grace tão interessante. Afinal, o que estamos assistindo é de fato o que ocorreu com a protagonista ou ela está contando apenas o que nós (e especialmente o mundo masculino) quer ouvir? A série não deixa nada mastigado. E é deprimente dizer, de novo, que a produção é absurdamente atual, mesmo sendo baseada num romance de 1996, que conta uma história de 1843.
![Anna Paquin: cruel com olhares doces Anna Paquin: cruel com olhares doces](http://www.aescotilha.com.br/wp-content/uploads/2017/11/Alias_Grace_Anna_Paquin.jpg)
Todo o resto do elenco também brilha, sempre com uma postura pesada, autoritária. Quem se destaca, além de Sarah Gadon, é Rebecca Liddiard, que interpreta a melhor amiga de Grace, Mary Whitney, e dá leveza à série, e Anna Paquin, que usa uma linguagem corporal que assusta pela crueldade e, ao mesmo tempo, submissão.
Trabalhando com detalhes, a minissérie caminha no seu próprio ritmo para desdobrar e enfatizar pequenos fatos dolorosos que se tornam significativos, em uma história sobre mulheres sufocadas que acreditam que as suas obrigações morais são casar e servir a outro homem, nada muito diferente do que a realidade atual.
Alias Grace consegue ser uma experiência interessante ao fazer com que nós escolhamos como julgar Grace e, consequentemente, várias mulheres. Fica, então, a pergunta: quando pensamos que a personagem manipula aqueles que a rodeiam, é por que sabemos que ela já foi condenada por um crime, por que a história dela tem pontas soltas demais ou apenas por que fomos criados a pensar que todas as mulheres devem sempre ser questionadas quando ousam bater de frente com o patriarcado?
Assista ao trailer de ‘Alias Grace’
https://www.youtube.com/watch?v=7YuAd66imOQ