Não há dúvida de que Amor de mãe, atual novela das nove exibida pela Rede Globo, tem sido um fenômeno televisivo em vários aspectos – medidos por réguas mais complexas que índices de audiência. A obra tem levantado diversas discussões, que dizem respeito a comparações entre Amor de mãe e a qualidade estética de séries televisivas, que costumam usar recursos tidos como mais arrojados que os dos chamados folhetins, como a exploração do melodrama marcado (com papéis facilmente reconhecíveis de vilões e bandidos, narrativas hiperbólicas e temas clássicos, como a traição, troca de bebês, paternidade negada, vingança, etc.).
Em outros termos, o principal produto ficcional da TV aberta tem se configurado a partir de escolhas ousadas por parte da emissora – afinal, o público talvez não esteja acostumado a uma narrativa desafiadora. Os resultados apresentados até então, em termos de audiência, têm sido oscilantes, levantando, para alguns críticos, a certeza de que ela precisa mudar pois estaria entregando à população uma série travestida de novela. A discussão aqui apontada, acredito, é riquíssima, pois discorre sobre elitismo cultural e a concepção da audiência: fazer uma “novela que pareça novela” é bom ou ruim? Quebrar o melodrama clássico, exagerado, é um fator de qualidade ou de perda de parâmetros? Deveríamos buscar renovar este produto já tão bem explorado pela TV brasileira, ou as novelas, por serem destinadas a públicos gigantescos, devem ser sempre pedagógicas, redundantes, sem dar margem a interpretações desviantes?
São todas reflexões muito pertinentes e que têm sido desdobradas de forma muito competente pelos críticos de televisão – sugiro, especialmente, os textos “Amor de mãe precisa mudar ou só estamos sendo idiotizados pelo horário nobre?”, de Henrique Haddefinir, e “Trama rocambolesca de Vitória lembra que Amor de mãe é só uma novela”, de Maurício Stycer. Mas no presente texto, gostaria de pegar carona em uma provocação feita pela crítica Cristina Padiglione em seu perfil no Twitter, quando escreve: “definitivamente, as mulheres alcançam diálogos que homem nenhum produz ao escrever um roteiro ficcional. Salve Manu Dias”. Ela se refere, aqui, ao trabalho no roteiro feito pela autora Manuela Dias, que assina o texto – e que colocaria, portanto, Amor de mãe como uma obra feminina, gerada pelo olhar de uma mulher, com resultados que seriam totalmente distintos se ela fosse criada pela mente de um autor.
Levanto aqui alguns argumentos que talvez ajudem a endossar a tese de Cristina Padiglione. Pessoalmente, acredito sim que há sutilezas em Amor de mãe no que diz respeito à abordagem de um universo feminino – não no sentido de ser exclusivo às mulheres, mas sim de contemplar pequenos elementos talvez mais passíveis de compreensão para nós. A começar pela fluidez da narrativa e pela provocação já trazida no nome da novela, “amor de mãe”, que brinca com um clichê (a ideia de que “nada se compara com o amor de uma mãe”, frase inclusive repetida pelas personagens, em suas diversas variações); no entanto, um olhar mais atento constata que o texto desafiador de Manuela Dias, na verdade, subverte o lugar comum, uma vez que há três protagonistas-mães que, em nome deste tal amor materno, cometem erros e prejudicam os filhos: Lourdes (Regina Casé) acobertou vários crimes envolvendo sua prole; Vitória (Taís Araújo) abandonou o filho recém nascido; Thelma (Adriana Esteves) superprotege o filho e o impede de tomar as rédeas sobre sua própria vida.
A começar pela fluidez e pela provocação do título, “amor de mãe”, que brinca com um clichê; no entanto, um olhar mais atento constata que o texto desafiador de Manuela Dias subverte o lugar comum.
Sendo assim, é bastante nítido que as mulheres de Amor de mãe têm uma construção mais apurada em suas sutilezas em relação aos personagens homens, pois fogem dos papéis planos de um típico melodrama. A tríade de protagonistas é formada por mulheres contraditórias, dignas tanto de admiração quanto de desprezo. Ouso dizer que é uma novela matriarcal: tudo gira em torno deles, mulheres centralizadoras, acolhedoras (o que nem sempre configura qualidade, conforme elucida a novela), capazes de salvar e prejudicar uma família inteira a partir de suas decisões. Se olharmos para os personagens masculinos, observamos menos nuances, consolidando caráteres mais simples, com menos complexidade.
Talvez os principais personagens homens sejam Raul (Murilo Benício), um homem rico que se entende ético e ponderado, mas que é sutilmente ligado a um sentimento de classe, que o coloca quase sempre como arrogante na trama; o vilão Álvaro (Irandhir Santos), incapaz de qualquer ato que não envolva algum tipo de perversidade; e Davi (Vladimir Britcha), composto como uma espécie de “ecochato”, inclusive na sua indumentária “esquerdomacho”, quase como se fosse um comentário debochado de Manuela Dias. Deste rol de homens, destoa apenas o ex-presidiário Sandro (Humberto Carrão), o filho perdido de Lourdes e Vitória, cuja personalidade meio acabrunhada meio agressiva revela um indivíduo quebrado, imaginado para além de uma leitura maniqueísta de mundo.
Há muito mais nuances femininas no texto de Manuela Dias, que vão além dos personagens criados por ela e dizem respeito aos diálogos mantidos por eles. As mulheres – e destaco especialmente Érica (Nanda Costa), uma das personagens mais empoderadas dos últimos folhetins, que reage sempre de maneira sóbria às ex-mulheres e namoradas de Raul – sempre costumam parecer mais arrazoadas que os homens. Em muitos momentos, Vitória, que é advogada, deu “aulas” ao público sobre justiça e sobre o problema da lógica punitiva dos que defendem, sem reflexão, que “lugar de bandido é na cadeia”. Noutro momento da trama, Érica e a irmã Camila (Jéssica Ellen) discutem uma possível traição de Raul de forma muito ponderada, sem os arroubos ciumentos (histéricos, já diria o senso comum, de forma pejorativa) geralmente associados a mulheres em cenas como essas.
Por isso tudo, endosso aqui o coro da qualidade de Amor de mãe, juntando-me à torcida para que ela permaneça como está e que puxe uma onda de novelas provocativas, maduras, desafiadoras.