O tema da violência doméstica contra as mulheres é assunto recorrente na imprensa brasileira há pelo menos uns bons anos. Ainda bem: o interesse do jornalismo pelo assunto nos mostra finalmente uma mudança de paradigma, em que situações de abuso e agressão finalmente saíram da antiga esfera do “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. Por certo, há sempre muito a ser debatido em torno da cobertura dessa violência, e é comum, por exemplo, que telejornais e programas de entretenimento tentem explorar ao máximo os casos que chegam ao conhecimento público.
Dois casos recentes trouxeram novas nuances na questão da violência contra a mulher. Falo aqui das denúncias das agressões sofridas por duas mulheres famosas: a apresentadora Ana Hickmann e a cantora Naiara Azevedo. Ambas registraram BOs contra os seus maridos, com quem foram casadas por muito tempo. Ana foi casada por mais de 25 anos e Naiara, por 10. Após fazerem as ocorrências na polícia, as duas situações chegaram na mídia e, a partir daí, passaram a reverberar em uma longa discussão que se desdobrou sob ângulos diversos.
A máquina televisiva, obviamente, foi para cima. O objeto cobiçado nas entrevistas negociadas com Ana e Naiara eram os corpos das artistas: não bastava a denúncia, era preciso que elas se pusessem em situações de pretensa intimidade, expondo à frente de entrevistadoras aquilo que aconteceu em suas vidas pessoais.
Ana Hickmann concedeu entrevista para o Domingo Espetacular, e Naiara Azevedo, para o Fantástico. Sentadas em salas confortáveis, elas trazem um ângulo extra que normalmente o jornalismo não mostra: o choque ao saber que mesmo mulheres tidas como extremamente poderosas podem estar passando por situações horrorosas em suas casas.
Serviço ou espetáculo?
A exposição dos casos envolvendo Ana e Naiara não deixa de passar pela lógica espetacularizada que rege boa parte da programação televisiva.
A exposição dos casos envolvendo Ana e Naiara não deixa de passar pela lógica espetacularizada que rege boa parte da programação televisiva. A entrevista de Ana Hickmann a Carolina Ferraz no Domingo Espetacular, por exemplo, dura nada menos que 40 minutos. A ideia, evidentemente, é estender a conversa para o nível da emoção.
Busca-se o money shot da televisão, que é a lágrima espontânea que a câmera tão instintivamente procura (e que de fato acontece no caso de Ana Hickmann), como se fosse uma espécie de pérola rara que é capturada pelo zoom (Naiara não chora na sua entrevista, embora esteja claramente em situação de choque).
Mas o mais interessante são os termos que se repetem nas falas das duas, sobretudo sobre a sensação de serem tratadas como objetos. Naiara fala que dizia ao marido que se sentia “como um móvel qualquer no canto”; já Ana afirma ter dito ao cônjuge não ser um objeto com uma função voltada ao trabalho.
Ambas as artistas, aliás, passaram pela mesma questão da chamada violência patrimonial, que ocorre quando o parceiro causa impactos e abusos em bens, como contas, roupas e outros itens – partindo assim para uma abordagem da violência mais sutil e evidente, embora, quase sempre (na ótica da mídia), restrita a classes mais altas.
É curioso que Naiara Azevedo conta que ela mesmo havia participado de uma campanha contra a violência, em que aparecia com hematomas no rosto. Ainda que tenha sido também agredida pelo ex-marido, ela é vítima de outros tipos de situações, que muitas vezes são invisibilizadas como “parte do casamento”.
Outro fator que chama a atenção é que as duas estão, ao longo das entrevistas, com o mesmo olhar estatelado. Elas falam com os olhos muito abertos que pipocam das órbitas, conotando um espanto que entra em consonância com a do próprio espectador. Afinal, quem talvez imaginaria que estas mulheres tão cheias de si, tão propensas a vender uma imagem de poder feminino, e que se expõem todos os dias no cotidiano fabricado em suas redes sociais, estariam passando por abusos quando a câmera desligava?
De forma irônica, a superexposição das duas também serviu de combustível para que seus seguidores checassem e criassem hipóteses sobre a violência que elas sofriam no passado. Não foram poucos os que buscaram os vídeos em que o marido de Ana Hickmann dava respostas atravessadas para ela e para o seu cachorro (ele se defendeu dizendo que estava desempenhando um papel). Já Naiara chegou a gravar um vídeo em que o ex-esposo arranca o celular de sua mão (ele respondeu, no Fantástico, que tudo não se trata de um engano, a clássica desculpa da situação “tirada de contexto”).
Por isso, talvez, se possa dizer que, mesmo que haja algo de bastante performático nas entrevistas-denúncia – afinal, elas estão belas, maquiadas e produzidas, desempenhando o mesmo papel que as deixou famosas -, há um certo serviço à população que é prestado aqui. Ao revelar breves relances feios de suas vidas que ocorrem quando elas não estão sob holofotes, Ana Hickmann e Naiara Azevedo podem expor a todos nós a verdade incômoda de que a violência doméstica não tem cara.
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