De tempos em tempos, somos acometidos por fatos tão trágicos que parecem ter potencial de mudar alguma coisa. O assassinato do refugiado congolês Moïse Kabagambe, que foi morto após ser espancado por cinco homens, quando cobrava o pagamento por seu trabalho em um quiosque no Rio de Janeiro, parece ser um desses casos. O horror causado por essa morte absolutamente gratuita parece escancarar certas verdades indesejáveis a nós, brasileiros – como a mentira atrás do mito de que seríamos um povo cordial, acolhedor com quem vem de fora.
Mas interessa-me, neste texto, pensar sobre os desdobramentos desta tragédia na televisão. Estamos aqui diante, mais uma vez, de um acontecimento que se torna noticiável (pelo menos na potência em que aconteceu) pelo fato de haver uma imagem que o documenta. Ou seja, primeiramente é preciso considerar que a repercussão dada ao caso é diretamente proporcional ao fato de que podemos vê-lo, testemunhá-lo, por meio do registro feito por uma câmera de segurança. É de se questionar sobre qual seria a comoção pública quanto à morte de Moïse se estas imagens não existissem.
É importante ressaltar que, ao repetir as imagens tantas vezes, as emissoras estão mais tirando vantagem do fato do que realmente prestando um serviço à população.
O resultado, nos dias seguintes à divulgação do vídeo, foi a exibição destas imagens pelas emissoras em uma espécie de looping infinito. Os programas policiais, por exemplo, chegaram a ficar longos minutos mostrando a cena enquanto os apresentadores faziam comentários, ou seja, tentavam encaixar o indizível em linguagem.
Por consequência, a morte de Moïse Kabagambe se repetiu – e se repete – na televisão segundo após segundo, enquanto nós, os espectadores, somos convocados a testemunhá-la, quase como se a legitimidade deste fato dependesse disso. Como se a indignação sobre a morte de um homem pobre, negro e estrangeiro só pudesse ocorrer na mesma medida que ela existe visualmente.
E há aqui um detalhe importante sobre a natureza desta imagem: por ter sido feita por uma câmera de segurança, pressupõe-se haver aqui um registro “puro”, para além de qualquer intencionalidade – diferente do que ocorreria, talvez, se fosse uma pessoa filmando o crime com um celular. Na prática, talvez seja possível dizer que a cena fica ainda mais atraente, por ser bastante explícita, e nos dar a “oportunidade” de participarmos quase como juízes que são convidados a avaliar aquilo que aconteceu nessa cena.
Creio que é importante ressaltar que, ao repetir as imagens tantas vezes, as emissoras estão mais tirando vantagem do fato do que realmente prestando um serviço à população. O que estão fazendo é tentar engajar uma audiência em uma espécie de transe hipnótico: passamos a ser mesmerizados para permanecer olhando e nos indignando. A filmagem da morte de Moïse Kabagambe ganha um caráter quase obsceno, pois o valor que se quer atribuir a ela é o do choque – como se ver mil vezes uma imagem violenta nos tornasse intolerantes a ela. Na prática, o que ocorre, como já sugeria Susan Sontag ao analisar a fotografia de guerra, é o contrário: quanto mais expostos àquilo que é insuportável, mais tolerável ele fica.
A noticiabilidade do fato

Outro aspecto concernente à morte de Moïse Kabagambe diz respeito ao peso e ao tratamento dado ao fato dentro das agendas jornalísticas. Alguns jornalistas constataram que, nos primeiros dias após o assassinato, o sobrenome de Moïse foi grafado nas telas de diferentes formas – sugerindo um certo descaso com ele enquanto um sujeito, quase como se ele fosse um token (uma espécie de “símbolo” para representar que os telejornais, assim como os brasileiros, fossem tolerantes, numa inclusão superficial e protocolar de grupos minoritários, como são os refugiados).
Por isso, tragédias deste tipo são oportunidades para notarmos certos padrões invisíveis dentro do jornalismo. Por exemplo, no dia seguinte à divulgação do vídeo, a escalada (aquele pequeno resumo das notícias lido pelo apresentador no início do programa) do Jornal Hoje destacou várias notícias. A morte de Moïse Kabagambe não estava presente, mas houve destaque à entrada do Ano Novo Chinês– sugerindo, provavelmente, que os pesos que damos a notícias que se referem a países estrangeiros nesta chamada pátria acolhedora costuma variar bastante.
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