Quando a Netflix chegou tudo era mato, para usar do meme geralmente postado no Twitter. As plataformas de streaming de VOD ainda eram uma novidade, mesmo que não o fossem verdadeiramente.
Com sua chegada, a promessa de liberdade criativa, do fim de amarras com as características da TV linear, o algoritmo a serviço do público. A agora gigante do streaming trouxe consigo várias “novas verdades”, teorias que, mais de uma década depois, estão sendo postas à prova e mostrando que muita previsão deu em nada.
Claro, ninguém é doido de questionar a inovação trazida pela chegada da empresa ao setor de entretenimento. Porém, os seguidos registros negativos da marca indicam que uma sangria precisa ser estancada.
O problema é maior do que a perda de assinantes, é necessário estar atento às causas mais do que aos sintomas, até mesmo porque eles possuem diferentes explicações. Como nunca antes, as empresas de entretenimento televisivo entenderam que era necessário mergulhar na nova era.
Só no mercado brasileiro, a Netflix ganhou concorrentes como Prime Video, HBO Max, Disney+, Star+, Discovery+, StarzPlay, Paramount+ e AppleTV+, só para ficar em algumas. Quase todas chegaram (ou se consolidaram) em um espaço inferior a dois anos.
Em termos gerais, o cenário seria vantajoso a quem chegou antes e solidificou o segmento, ditando as próprias regras. No entanto, o que se nota são muitas oportunidades desperdiçadas. Mesmo a problemática Amazon entendeu rapidamente que precisava fazer movimentos, apostando no futebol ao vivo.
As demais foram, cada uma à sua maneira, criando suas estratégias para navegar um mar cheio de grandes tubarões. Os direitos de transmissão e distribuição se tornaram preponderantes. Foi assim com o catálogo Disney e Marvel, tem sido assim com produções da HBO.
Só que há algo muito mais perigoso para a Netflix: a empresa é refém de seu modelo incerto. Afirmo que é incerto, porque pouca gente entende como funciona a estratégia de aposta em produções. Falar apenas que é “audiência” é muito raso. E problemático. E a responsabilidade é da marca.
House of Cards foi um marco, pelo valor, pelos atores, pela produção. Seguiram-se alguns sucessos paralelos, sem o mesmo dinamismo e apelo. Até aí está tudo ok, é do jogo. Mas o seriado não definiu o DNA da criação da plataforma. Pelo contrário.
A Netflix passou a confundir liberdade criativa com ausência de critério.
Seguimos assistindo novas tentativas, mas todas sem o menor elo. Sense8, 13 Reasons Why, Bridgerton, Round 6, Stranger Things e Ozark poderiam estar em qualquer emissora de TV a cabo norte-americana. Cada uma contribuiu ao criar um séquito de fãs fervorosos que batalham mais pelas renovações do que pela qualidade do material.
Nenhuma análise pode ser feita apenas à luz dos números, que são frios e não traduzem a real dinâmica que ampara as decisões da marca. Para cada milhão de espectadores de Round 6, outros projetos foram abandonados pelo caminho. Em comum, vários tinham grandes personalidades por trás ou à frente das câmeras. A Netflix passou a confundir liberdade criativa com ausência de critério.
Quando alguém ouve a sinopse de um seriado da HBO, já sabe o que esperar. O mesmo se estivermos falando de TV aberta norte-americana. Eu sei que a ABC é a casa dos dramas água com açúcar. Mas, e a Netflix? O que ela é? Qual a espinha dorsal de suas produções?
Nesse intervalo, ela fez diferentes apostas. As megaproduções do cinema (que já foram formalmente abandonadas por projetos menores), a aposta em direitos de distribuição global (a batalha por Seinfeld nunca será esquecida) e a compra de seriados de outras emissoras (a plataforma deve muito a La Casa de Papel).
Iniciativas como o investimento em produções locais ajudam a criar pontes com o público em outras regiões, menos acostumados a grandes produções seriadas, por exemplo. Foi assim na Espanha (As Telefonistas), no Brasil (3% e Coisa Mais Linda) e na própria Coreia do Sul, mas até isso parece não ter resistido à falta de critério da plataforma.
Analisando com distanciamento, fica mais nítido que a cobrança por resultados financeiros vai seguir sendo parte fundamental do modelo da empresa. Nenhum problema, no capitalismo selvagem do VOD é assim que as iniciativas sobrevivem. A marca tem conseguido criar alguns fenômenos na cultura pop, mas fenômenos têm essa característica: nos impressiona, até não surpreender mais.
Frente a todas as crises que existem, marcas como a HBO estão muito melhor estruturadas para mares tempestuosos. Não é uma questão de achismo, mas de história. E a Netflix tem pela frente mais um mar revoltoso a encarar.
Stranger Things encerrará seu ciclo na próxima temporada. Round 6 só deve retornar após 2023. No momento, a pergunta é: para onde o nariz dos executivos da gigante do streaming vai apontar? Mantendo o rumo atual, a marca que formou o modelo tende a se tornar um bacião de negócios.
E o público parece não estar muito disposto a pagar os aumentos consideráveis que a empresa tem cobrado para ver essa falta de personalidade toda.
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