A data era 29 de julho de 1981. Quase 800 milhões de telespectadores, em 61 países diferentes, falantes de 34 línguas, estavam parados na frente de um aparelho de televisão para assistir a um grande evento: o casamento de Lady Diana e o príncipe Charles, na Catedral de Saint Paul, em Londres. A realeza inglesa – uma camada da população que gera curiosidade, para bem e para o mal, em todo tipo de gente – concretizava um acontecimento que o mundo inteiro parecia desejar ver.
Tratava-se de casamento como incontáveis outros, protagonizados por incontáveis anônimos e famosos, mas que logo gerou uma repercussão bastante peculiar, explicitada nas falas de estudiosos em Comunicação e comentaristas de toda espécie: tudo ali parecia ter sido feito cuidadosamente em razão de sua transmissão televisiva. Realidade e espetáculo, vida pública e vida privada se misturavam ali, muito claramente, em cada um dos detalhes – da cor das roupas dos convidados à cauda do vestido de Lady Di, confeccionada para que pudesse ser transmitida pelas câmeras.
Como expressou o pesquisador Umberto Eco, em artigo publicado na mesma época (cujo debochado título, em tradução livre ao português, seria: “Em nome do vídeo, vos declaro marido e mulher”): “querendo ou não, Charles e Diana se casaram para produzir um espetáculo televisivo. Não se trata de uma piada: sabemos, é claro, que se casaram para dar um herdeiro ao trono, para consolidar os vínculos entre o país e a coroa (…). Mas todos esses fins só poderiam ser alcançados se as núpcias se transformassem em um bom espetáculo televisivo”. Saía daí as bases para uma discussão em torno do que se chamaria de “telerrealidade”, ou seja, o poder da TV de criar acontecimentos que pautariam toda a realidade – e que, se não houvesse a televisão, talvez não existiriam ou talvez não repercutiriam na sociedade da mesma forma.
O casamento de Harry e Meghan situou-se numa contradição imanente: entre o conservador e o moderno, entre o tradicional (a preservação da instituição do casamento, dentro de uma realeza já meio datada) e o arrojado (os noivos são antenados, envolvidos com causas sociais).
36 anos depois desse grande “teleacontecimento”, novamente estamos parados frente à televisão para assistir a outro casamento real inglês, o do príncipe Harry, filho de Diana e Charles, com a atriz americana Meghan Markle. Certamente, um evento de menor repercussão que os casamentos anteriores (de Lady Di e o de seu primogênito, o príncipe William), mas por isso mesmo uma cerimônia interessante. Se a TV é, de várias maneiras, um produto da sociedade que a fabrica, então é sempre curioso notarmos o quanto os acontecimentos televisivos se alteram de acordo com aquilo que ocorre no mundo fora da TV, acompanhando o chamado espírito do tempo.
E o casamento de Harry e Meghan foi peculiar nesse sentido. Situou-se numa contradição imanente: entre o conservador e o moderno; entre o tradicional (a preservação da instituição do casamento, dentro de uma realeza já meio datada) e o arrojado (os noivos são antenados, envolvidos com causas sociais); entre o reservado (tudo, desde o vestido da noiva, era minimalista, pouco ostensivo) e a publicização máxima da vida privada (a transmissão de um evento familiar para centenas de países, tal como uma final da Copa da Mundo).
Deste modo, é possível dizer que a cerimônia, tal qual o casamento de Lady Di, foi evidentemente planejada tendo em vista a construção de um discurso que pudesse circular, de forma mais ou menos compreensível, em diferentes culturas. Para começar: foi uma cerimônia curta, eficiente, sem a sensação de “naftalina” a qual por vezes se associa às realezas. Havia, na plateia, celebridades como David Beckham e a spice girl Victoria, Elton John e seu marido, George Clooney e a esposa Amal Alamuddin, a tenista Serena Williams, amiga pessoal da noiva.
A presença de Meghan, aliás, que é afrodescendente, trouxe um tom de tolerância e engajamento, evidente num discurso concretizado nas minúcias: ia desde as tranças dread da mãe de Meghan, às crianças de projetos sociais atendidos pelo casal que foram convidadas para o evento; dos elementos presentes – e ausentes – no juramento feito pela noiva, retirando a palavra “obedecer”, à presença do coral gospel que cantou “Stand by me” (vale lembrar, aliás, que Lady Di tinha uma forte ligação com a música pop a partir de Elton John, seu amigo pessoal – após a cerimônia, o artista cantou na recepção feita aos convidados de Harry e Meghan).
Um outro sinal dos tempos que mudaram está nas próprias datas: Meghan Markle nasceu em 1981, 6 dias depois do célebre casamento de Charles e Diana. Tem, portanto, 36 anos no dia de seu casamento, 3 anos a mais que o marido, Harry. Além disso, tem a exata idade que tinha Diana quando morreu tragicamente em um acidente em Paris – quando ela já tinha um filho de 15 anos e outro 13, enquanto Meghan ainda deverá constituir sua nova família (ou não).
Em suma, um acontecimento televisivo em toda sua pompa e circunstância, sem dúvida; mas uma cerimônia oxigenada à luz das mudanças e fiel a um discurso político construído pelos noivos e, por que não, por toda uma “casta” que eles representam. Por isso mesmo, um evento memorável que fez jus ao legado de Lady Di, conhecida como a “princesa do povo”, justamente por seu talento inato de tocar o coração das massas – o que fazia, é claro, via televisão.