Frente ao mar vertiginoso de imagens, informações e falas que hoje nos inundam a partir do momento que nos conectamos a algum dispositivo midiático, é comum defendermos a ideia de que nada (ou muito pouco) hoje nos toca. São tantos fatos chocantes, negativos, devastadores, que muitos são os espectadores que hoje optam por simplesmente evitar os meios de comunicação. Uma visão oposta também é possível: são tantos os estímulos que as mídias nos trazem que hoje todos parecem estar de alguma forma “anestesiados” à crueza dos fatos. Os que se atêm a este posicionamento parecem acreditar: são tantas as tragédias que é como se não ocorresse tragédia alguma.
Ambas as visões – que polarizam a ideia de que os meios de comunicação causariam uma hipersensibilidade aos acontecimentos em alguns e/ou uma espécie de insensibilidade coletiva quanto a eles – estão tão distantes quanto próximas. O que os une, de alguma forma, é a impressão de que, às mensagens midiáticas, ninguém fica incólume.

Talvez então não seja por acaso que muito já se falou (e ainda se fala) sobre a pobreza de certos formatos televisivos que buscam, de algum modo, deixar bem claro ao espectador o que ele deve sentir ou pensar. Vide, por exemplo, os programas popularescos das tardes de sábado e domingo que quase gritam para o público aquilo que ele deve sentir. Refiro-me às atrações de cunho assistencialista, que singularizam a história de algum indivíduo e criam narrativas dramáticas, com trilhas sonoras tristes e edificantes, textos rasos que remetem aos “sonhos”, “dificuldades”, “paixão”, além de reduzir suas personagens a adjetivos simplórios como “guerreiro”, “lutador”, etc. Enfim, a todos aqueles programas que fazem uso do que vulgarmente chamamos de estratégias sensacionalistas, pois se fundamentam no estímulo à criação de sensações no público.
Profissão Repórter revela a grande sacada de seu formato o tom que equilibra a sobriedade esperada à narrativa jornalística e a comoção inevitável do indivíduo que vê.
Tendo isto em mente, proponho aqui uma atenção maior ao episódio “Refugiados”, veiculado pelo Profissão Repórter, programa da Rede Globo cuja estética se sustenta na exposição das “entranhas” do fazer jornalístico, em uma promessa de maior honestidade com o público (veja análise aqui). Como bem sabemos, a temática das imigrações é uma das mais urgentes no mundo contemporâneo. No Brasil, com a emergência de novos fluxos migratórios – em razão, sobretudo, do aumento da vinda de haitianos ao país nos últimos anos – este debate tem ganhado mais densidade em virtude da proximidade. De todo modo, para muitos, a realidade daqueles que habitam nos países em guerras é ainda um drama muito distante, quase como se habitasse no plano da ficção.
Cabia então ao episódio de Profissão Repórter trazer alguma “corporeidade” a estas vidas dos que são obrigados a fugir de seu país. Capitaneado pelo experiente Caco Barcellos e por jovens repórteres que ainda se constroem nesta profissão, o programa tem sido ao longo dos anos uma das grandes atrações escondidas na grade da emissora. Quiçá, arriscaria dizer, seja este o melhor jornalístico em exibição na Globo. Diferente de outros programas, que hoje arriscam suas reputações em uma estratégia um tanto contestável de proximidade entre jornalistas e público (Boni, o ex-todo poderoso da emissora, criticou em seu mais recente livro a crescente tendência à informalidade no Jornal Nacional), Profissão Repórter explora com mais sucesso no uso da pessoalidade do repórter. O certo “amadorismo” dos textos proferidos pelos repórteres, por exemplo, costuma trazer vida à narrativa do programa, marcando uma oposição possível à intimidade calculada de certos profissionais nos telejornais diários.

O episódio sobre os refugiados que escapam rumo a Europa consegue, por meio da narrativa simples de Profissão Repórter, comover pela crueza daquilo que se exibe. As imagens conseguem registrar o exato momento em que um bote de refugiados atravessa o mar Egeu e chega à ilha de Lesbos, na Grécia, e o estupor das pessoas que perderam tudo numa fuga nas piores condições possíveis a um país vizinho, sem saber o que isso significará para eles. Insere na narrativa os relatos de tantos voluntários que dedicam seu tempo livre para auxiliar aqueles que fazem esta travessia. Sobriamente, o programa também dá espaço às vozes de franceses xenófobos que associam erroneamente os refugiados aos terroristas do Estado Islâmico, mas presta esclarecimento que ambos – imigrantes e europeus – fogem e enfrentam a mesma ameaça.
Os repórteres participam junto de uma viagem de trem de famílias inteiras que viajam por dezoito horas, amontoados como gado mal transportado, em rumo a uma possibilidade de futuro. Os jornalistas do Profissão Repórter parecem posicionar-se mais como testemunhas da tragédia do que como alguém em busca de um depoimento forte ou de uma cena impactante. Por outro lado, o formato do programa não corta o torpor que tais repórteres sentem, humanos que são, frente àquilo que se desenrola na sua frente. É quase impossível não se comover com a fala engasgada do repórter que enxuga os olhos quando lembra do entrevistado que atravessou a Turquia com o filho deficiente no colo, ou quando este pai, ao ser perguntado para qual cidade da Alemanha está fugindo, responde “qualquer uma”. Revela-se aqui que a grande sacada de seu formato está no tom que equilibra a sobriedade esperada à narrativa jornalística e a comoção inevitável do indivíduo que vê e vive.
Parece então que os recursos parcos do jornalístico Profissão Repórter – a edição minimalista, com trilha sonora discreta; a inexperiência dos envolvidos, ainda não “domesticados” às estratégias automatizadas pelos repórteres televisivos; a câmera titubeante, como se fosse o olho humano que vê e se impacta – nos mostram que nós, espectadores, continuamos sim sensíveis àquilo que assistimos. Talvez estejamos apenas entorpecidos daquelas narrativas grandiloquentes e redutoras que tentam escancarar a todo custo o peso das tragédias. Como se elas, em si mesmas, já não fossem pesadas o suficiente.
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