Em março, completamos um ano vivenciando a pandemia de COVID – uma tragédia em vários aspectos, que nos atinge de múltiplas formas. Nesta mesma época, em 2020, de uma hora para a outra, uma série de mudanças teve que ser aplicada na vida de todos nós.
Um ano depois, para desespero geral, seguimos na mesma situação, quiçá pior. Nesse período, conforme comentamos em outros textos da coluna, a TV teve que se adaptar e assumir para si, mesmo sem ter se preparado para isso, uma centralidade no cotidiano da população – muitas vezes, servindo como uma das poucas janelas pelas quais conseguimos espiar, sem correr tantos riscos, como está a vida lá fora. Ora, se a regra (teoricamente) é nos mantermos todos em casa, os meios de comunicação são instados a assumir sua clássica função de vigilância.
Essa reflexão trazida neste texto é inspirada por dois episódios gerados por jornalistas. O primeiro é uma análise do jornalista Maurício Stycer, do UOL, na qual discute a necessidade de que a televisão seja franca e exponha a crise gerada pelo COVID, uma vez que o país hoje passa a pior situação já enfrentada em relação à doença, com números altíssimos de mortes, hospitais lotados e a iminência do colapso da saúde.
O outro episódio é o tweet da colega Helen Anacleto, repórter de TV, que levantou, em sua página, o questionamento ouvido de cidadãos de que “jornalista gosta de noticiar desgraça”. Portanto, toda emissão que foque na tragédia carregaria uma espécie de gozo. É uma máxima do senso comum: há um ditado, inclusive, que diz que good news is bad news – ou seja, se não houver nada de ruim acontecendo no mundo, não há jornalismo.
eu fico fula da minha vida quando ouço que o jornalista gosta de noticiar a desgraça. cês acham mesmo que falar TODO SANTO DIA de fila de espera pra leito de uti, morte AOS MONTES, desespero, angústia deixa qualquer ser humano feliz? em que mundo cês vivem?
— Helen Anacleto (@helen_anacleto) March 4, 2021
Penso que há questões importantes trazidas nas duas reflexões dos colegas. O primeiro ponto que destaco é a natureza do ofício do jornalismo – que é, em brevíssimo resumo, falar sobre todos, conspirando para a melhora da vida social. Ora, se o jornalismo diz respeito a todos, é quase natural que todos sintam que também entendem um pouco de jornalismo. Por isso é tão comum que jornalistas ouçam recomendações de como o jornalismo deve ser, do tipo: se tivéssemos uma imprensa séria, tal coisa aconteceria. Algo que não acontece, por exemplo, no trabalho dos médicos ou engenheiros (se tal profissional fizesse tal coisa, talvez o prédio não caísse ou o paciente não morresse).
Se vivemos tempos extremos, precisamos de medidas extremas, como a de “sacrificar” (com muitas aspas) a saúde mental se quisermos manter a saúde geral (em outras palavras, a vida).
Ou seja, a população em geral “domina” o resultado do trabalho jornalístico, mas não conhece o processo interno da produção das notícias. Por isso, é comum nutrir “mitos” acerca do que acontece nos bastidores, como que emissoras manipulam a realidade, repórteres só ficam felizes se encontram tragédias, etc. Que fique claro: não se sugere aqui que não haja algum fundamento nessas críticas, mas sim que elas são muito mais sustentadas por mitologia do que por realidade.
Por fim, discuto aqui o ponto levantado por Maurício Stycer, sobre a responsabilidade da TV de falar, de forma desnuda, sobre a dureza do mundo conforme enfrentamos – as tragédias diárias do caos na saúde, os milhares de brasileiros que todos os dias estão padecendo perante essa doença horrível, os familiares que perderam seus entes de forma súbita e, certamente, terão muita dificuldade para encarar o luto. Conforme o ponto levantado pelo jornalista, mostrar a crueza dos fatos – o que tem sido feito, por exemplo, por programas como o Profissão Repórter – é uma das únicas ferramentas que temos para lutar contra o negacionismo. Escreve Stycer: “mostrar a situação nas UTIs, nas entradas dos hospitais, nas casas das pessoas mais necessitadas, nos cemitérios. É a forma mais eficaz, possivelmente, de sensibilizar o cidadão sobre a necessidade de se proteger”.
Eu concordo, e penso que, em momentos extremos de como vivemos, é preciso abrir mão de algumas afirmações circulantes, como a que reafirma que o jornalismo nos arrasta a lugares sombrios – ou seja, que precisamos evitar a TV se quisermos preservar a saúde mental. Se vivemos tempos extremos, precisamos de medidas extremas, como a de “sacrificar” (com muitas aspas) a saúde mental se quisermos manter a saúde geral (em outras palavras, a vida).
Não obstante, ressalto que essa é uma questão complexa, pois parte da convicção (algo problemática) de que ver significa agir. Conforme já discutido nessa coluna, numa era em que vemos tudo, corremos o risco de nos tornarmos cegos universais – capazes de enxergar, mas passivos quanto aos efeitos das imagens. Quanto mais pessoas vermos morrendo na TV, maiores as chances de essas mortes se tornarem quase nada.
Obviamente, não sugiro aqui que a TV precise ser comedida na exibição da tragédia. Repetindo o argumento anterior, medidas extremas pedem medidas extremas. Ainda que haja o risco da banalização da tragédia do COVID, mostrar as perdas, da forma mais explícita o quanto for possível, continua sendo a única chance que temos para que os fatos nos toquem e, de fato, consigamos um dia sair dessa.
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