Um esquete exibido na última temporada de Tá no Ar foi bastante inspirado. Durante um programa fictício chamado Domingo no ar, um apresentador vivido por Marcelo Adnet recebe o ator Antonio Calloni em um quadro intitulado “É pra chorar”, que lembra o “Arquivo Confidencial”, do Domingão do Faustão. O apresentador exibe várias imagens e situações comoventes – de crianças abandonadas, animais de rua, refugiados da Síria – no intuito de arrancar lágrimas de Calloni, que permanece impassível. Ao final, depois de muita luta, Calloni chora, e o apresentador arremata, em êxtase: “O Calloni chorou! Ele mostra que é humilde, que tem sensibilidade, que é altruísta, e que sabe se colocar no lugar dos outros!”.
Bastante engraçado, o quadro é claramente uma referência aos programas exibidos no domingo por diversas emissoras e que têm, em comum, o mesmo objetivo: o de comover, trazer à superfície o sentimento latente no espectador. Não importa qual seja o canal, todos exploram, de alguma maneira, a busca da emoção – seja por meio de recursos simplórios, sensacionalistas, seja por meio de recursos mais técnicos, sofisticados. O que inspira uma reflexão: por que, afinal, a emoção é um produto que todos os canais estão dispostos a explorar?
A verdade é que a emoção transmitida pelos indivíduos que se colocam em frente às câmeras de televisão se tornou uma espécie de commodity, um insumo raro e valioso do qual todas as emissoras estão atrás. Basta notar um “cacoete” recorrente em todas elas: quando um entrevistado parece começar a se emocionar, o cameraman instantaneamente dá zoom para capturar, com detalhes, a lágrima que se insinua nos olhos do sujeito. E, curiosamente, todos nós parecemos sedentos para beber desse segundo de emoção, como se nós também tivéssemos encontrado algo muito raro que só ocorre quando alguém sucumbe aos seus sentimentos.
Não por acaso, a emoção é também a marca da TV do fim de semana, quando, imagina-se, as famílias estão em casa depois de uma exaustiva rotina de trabalho e querem (mesmo sem saber que querem) transbordar todas as frustrações vividas em seu cotidiano. Eu diria, portanto, que há uma visão classista nesta TV que oferece ao seu público o choro fácil. É o “povão”, acredita-se, que vai atrás da mídia televisiva em busca de uma catarse, de um extravaso que não encontra em outro lugar. Conforme já comentei nesta coluna, a TV dominical carrega em si mesma uma definição daquilo que entende ser uma programação de caráter popular, que seria acessível a todos. Sentimentos mais sofisticados, conforme esta lógica, não são disponíveis para boa parte da população. Deste modo, a emoção é vista como um produto rentável, pois atingiria um maior número de pessoas.
Mas há outra ideia que nos atrai à emoção e a torna desejável para todos nós. Vivenciamos, como sabemos, na era da comunicação e do marketing, onde tudo parece ser controlado pelos interesses de alguma corporação – mesmo quando se pretende sugerir que não. Neste contexto em que tudo pode ser programado, valoriza-se, justamente, aquilo que entendemos ser o mais espontâneo, vindo do âmago, do sentimento não racionalizado. Coletivamente, compreendemos que as palavras mentem, mas o corpo (o instrumento que carrega a emoção), não. O teórico Peter Brooks define bem esta lógica, ao dizer que “enquanto a linguagem pode ter sido dada ao homem para dissimular seus pensamentos, os sinais físicos só podem revelar”.
É justamente pelo fato de a emoção ser democrática que ela pode ser perigosa, caso seja utilizada como um recurso em mãos erradas.
O corpo, portanto, carregaria uma linguagem universal, da qual todos compartilhamos. Essencialmente, a emoção é democrática, algo que nos iguala em um mundo repleto de desigualdade. Acrescento ainda: nós acreditamos que nos tornamos humanos ao sentir, e não ao pensar. Ilustro aqui um exemplo disso na cobertura da tragédia de Brumadinho (MG), em que um dos personagens de destaque é o jovem tenente Pedro Aihara, que tem chamado a atenção justamente pela sobriedade com que desempenha a função de porta-voz do Corpo dos Bombeiros (classe profissional que precisa não ser comandada por sentimentos para conseguir desempenhar bem sua função). A reportagem do jornal El País que trata do tenente o elogia, mas destaca: “preparado, ele segue se demonstrando humano. O tenente se emocionou na manhã desta segunda-feira ao falar sobre a incansável busca pelos desaparecidos”. Sem esta evidenciação pública da emoção, talvez Aihara fosse visto com antipatia, como se fosse um robô (ao que me parece, foi um pouco o que ocorreu com a figura pública da médica do Hospital Evangélico, que acabou inocentada dos crimes a que foi acusada).
E é justamente pelo fato de a emoção ser democrática que ela pode ser perigosa, caso seja utilizada como um recurso em mãos erradas. Ainda que todos nós valorizemos a emoção, ela não pode ser usada enquanto elemento a guiar as nossas decisões, especialmente às que regem a coletividade (você certamente não gostaria de ser operado por um cirurgião emocionado, por exemplo). Creio que o mesmo serve para a comunicação de massa: enquanto a emoção nos leva ao extravaso, a um gozo coletivo, apenas a racionalidade nos traz a sobriedade necessária para viver. Em outra imagem, nos traz a frieza (que, ao contrário do que sugere o senso comum, é algo positivo e não negativo) do raciocínio lógico.
E como esse sentido negativo da emoção é explorado pela televisão? De diversas formas: por exemplo, nas matérias sensacionalistas que descontextualizam dados e geram uma paranoia de insegurança, ou nos programas assistencialistas que beneficiam pessoas específicas e fecham os olhos aos problemas mais amplos. Mas o mais grave de tudo, ao que me parece, é quando a emoção se torna a régua para medir questões nas quais apenas o pensamento racional e lógico deveria estar envolvido, como quando políticos ou pessoas públicas choram na frente das câmeras e tentam nos convencer de que não são humanos, e não profissionais, como deveriam ser vistos.
Em tempos de comunicação amadora, em que a informalidade é usada como discurso, é preciso ficar atento a isso: o quanto a emoção será usada (se é que já não está sendo) para nos convencer de coisas – pelo coração, é claro, e não pelo cérebro. E tudo isso sob a expectativa falsa de que a emoção nos torna automaticamente mais altruístas, sensíveis, humildes, como brinca o apresentador vivido por Adnet.
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