A situação da pandemia de coronavírus tem sido uma experiência inédita para todos os indivíduos que habitam a Terra. Há os que comparem esta crise às grandes guerras mundiais, uma vez que atravessamos um período, a nível global, no qual ninguém consegue prever o que virá depois. A única certeza que temos é que tudo será alterado: o mundo do trabalho, as relações humanas, o sistema de ensino. E a TV, como parte de tudo isso, também se transformará. De fato, já está se transformando.
Nas semanas anteriores, esta coluna buscou se atentar às reverberações desta crise na televisão brasileira. Nós já vimos o cancelamento de vários programas para evitar gravações, incluindo a interrupção atípica das tradicionais novelas da Globo. Vimos a agenda dos telejornais tomarem praticamente toda a programação, numa abordagem monotemática: só falam da pandemia. Vimos também o registro de números grandiosos de audiência, já que boa parte da população está em casa e as TVs voltaram a estar ligadas o tempo todo.
Tudo isto é muito impactante e, obviamente, não sabemos o que se alterará na televisão com o encerramento desse período (nem quanto tempo isto vai durar). Por isso, gostaria de refletir aqui sobre um ponto levantado pelos críticos Maurício Stycer, Flavio Ricco, Chico Barney e Debora Miranda no podcast UOL Vê TV, da última semana: o fato de que esta crise esteja escancarando a viabilidade de se fazer uma televisão mais simples, menos megalomaníaca, mais econômica, e ainda assim eficiente.
Como temos visto, as adaptações das emissoras frente às limitações impostas pela pandemia têm sido numerosas. Programas de auditório passaram a ser emitidos sem plateia, como o Domingão do Faustão. Reprises se tornaram uma constante, como a exibição da final da Copa do Mundo de 2002 em pleno domingo de Páscoa. O Brasil Urgente, de José Luiz Datena, tentou ser transmitido da casa do apresentador antes de voltar ao estúdio da Band, por dificuldades técnicas. Talk shows como Greg News, da HBO, começaram a ser gravados sem a risada do público, em espaços privados. Já nos telejornais, a entrevista via videoconferência virou uma regra. Tanto os repórteres quanto os entrevistados estão falando de suas casas, sendo filmados por câmeras não profissionais ou celulares. Por isso mesmo, a qualidade técnica (enquadramento, qualidade de imagem e de som, quantidade de edição) tem sido reduzida consideravelmente.
Afinal, onde se encontra a natureza da televisão? Será que este veículo precisa de muito dinheiro para poder existir? É possível fazer boa televisão gastando menos, com poucos profissionais ou pouco investimento em elementos cênicos?
O mesmo se pode falar sobre um conhecido “padrão Globo de jornalismo”. Por mais que estejam mantendo posturas profissionais, alguns repórteres parecem estar mais relaxados, menos “performáticos”. Mesmo os apresentadores do principal telejornal do Brasil, William Bonner e Renata Vasconcelos, se assumem cansados e pedem calma aos espectadores, quebrando uma sisudez que seria a norma do Jornal Nacional. A mensagem por trás disso é que vivemos um momento de exceção, em que tudo o que resta é o mais essencial – nem que seja assumir a própria vulnerabilidade em frente às câmeras.
Bem no fundo, a discussão que se sugere aqui poderia ser assim sintetizada: afinal, onde se encontra a natureza da televisão? Será que este veículo – que, em sua essência, tem uma produção cara, diferente, por exemplo, do rádio – precisa de muito dinheiro para poder existir? É possível fazer boa televisão gastando menos, com poucos profissionais ou pouco investimento em elementos cênicos? Todas essas questões vêm à tona neste momento, e talvez estejam enfatizando a necessidade de uma TV que se atente menos à forma (a qualidade técnica/ estética) e mais ao conteúdo que ela carrega.
Em diversos textos dessa coluna, e no livro que escrevi em 2017, tentei explorar um pouco essa hipótese de que há uma ascensão de uma espécie de “protocolo da precariedade” da TV que se relaciona com o aumento de participação de conteúdos amadores nas mídias, os quais pareceriam, para uma camada da audiência, mais convincentes e mais autênticos que os produzidos pelos profissionais.
Esta estética da simplicidade, que carrega um discurso de desconfiança quanto às mídias, tem apenas aumentando ao longo dos últimos anos. A própria estética amadora da comunicação do presidente Bolsonaro, meticulosamente calculada, é o perfeito sintoma de que essa ideia de simplicidade tem encontrado reconhecimento no público, que a enxerga como mais genuína, menos “manipuladora” (um adendo: curiosamente, em um momento de crise extrema, Bolsonaro tem buscado os protocolos mais formais para falar à população, ao invés de sua explorada estética rústica das lives).
Este estatuto do “autêntico”, portanto, se engaja com um movimento que já vinha se prenunciando há um bom tempo. É difícil saber do quanto restará disto tudo ao encerramento da pandemia e da quarentena, mas esperemos que esta lição de que às vezes “menos é mais” permaneça reverberando nas emissoras. Obviamente, não se desconsidera aqui a centralidade da imagem na TV, mas sim que há um equívoco em encará-la como única prioridade deste veículo.