Chegamos à época do ano em que se levanta aquela polêmica vazia anual: quem assiste ao Big Brother Brasil é burro e fútil? E quem não gasta seu tempo assistindo ou discutindo esse programa é mais culto que quem o vê?
Prometo não gastar linhas com uma discussão deste tipo, até porque ela já foi feita milhares de vezes. Mas para quem se dedica a pensar a televisão, é inegável que, 21 anos desde a estreia, o programa segue sendo um fenômeno: continua suscitando conversas sobre o que acontece dentro dele, gerando níveis de audiência que o tornam viável e, acima de tudo, reinventando-se a cada edição, mesmo que pareça sendo sempre a mesma coisa.
Big Brother Brasil 22 segue na leva inaugurada há 3 anos, com a mudança da entrada do “camarote”, que mexeu na lógica do programa. Parecia inicialmente injusto misturar pessoas anônimas e famosas, pois as últimas estariam sempre em vantagem, já que uniam um séquito de fãs. Mas o paradigma de artistas como Karol Conká, Projota e Nego Di mostrou que esta premissa era falsa: como diz o meme, eles perderam tudo, não importando o capital (monetário e social) que tinham fora da casa.
Por isso, dá para dizer que o BBB nos fala o tempo todo sobre a efemeridade da fama, um império construído sobre nada – ou pelo menos, com uma base frágil. A moeda requisitada pelo reality show da Endemol é bastante cara: compro sua reputação em troca de alguns momentos de intimidade, das coisas que você não mostra quando está performando (no caso dos artistas, dá para dizer, é quase 100% do tempo).
No BBB 22, novamente temos os impactos das edições anteriores. Os membros do “camarote” já chegam na casa cientes que os custos de sua participação podem ser caríssimos – R$ 1,5 milhão é nada perto do que eles podem perder (ou ganhar?). Por isso, é sempre meio uma incógnita entender por que pessoas como Tiago Abravanel, Naiara Azevedo e Jade Picon topam entrar na “casa mais vigiada do Brasil”. Se não querem ganhar mais dinheiro do que já têm, o que eles desejam?
Uma casa de totens
Todo mundo que assiste ao BBB sabe disso, mas não custa repetir o óbvio: reality shows de convivência são interessantes porque refletem aquilo que está acontecendo na sociedade. As pessoas (tanto as que participam, quanto as que o assistem) não estão isoladas no mundo e, portanto, tudo o que fazem e falam tem a ver com o tempo que vivemos. Ver as primeiras edições de Big Brother Brasil, produzidas no início dos anos 2000, mostra que muito o que acontecia lá seria inconcebível hoje.
Big Brother Brasil é interessante justamente porque é uma máquina engolidora de toda representação de nós mesmos que tentamos fazer.
Nos dias atuais, estar desinformado sobre as mudanças é mais do que pecado, é quase um crime – falar alguma bobagem é o caminho direto ao cancelamento. Por isso, quase todo mundo ali pretende ser um totem, representar um grupo ou uma causa além de si mesmo. Ser apenas privilegiado parece ser um erro, e corre menos risco de rejeição quem se dá conta disso. Quem não participa de alguma minoria – como Arthur Aguiar, homem cis heterossexual, cuja fama se baseia na quantidade de traições conjugais cometidas – precisa se revelar consciente de que o mundo não se reduz à sua realidade.
O fato é que todos os participantes, em alguma medida, sabem disso, mas não importa. Big Brother Brasil é interessante justamente porque é uma máquina engolidora de toda representação de nós mesmos que tentamos fazer (alô, Erving Goffman!). É por isso que não importa o quanto Naiara Azevedo se esforce em “aprender” sobre negritude e cole nos participantes negros para parecer uma pessoa tolerante ou inclusiva. A onipresença de câmeras mostra que, na real, ela está sempre falando dela mesma.
Positividade tóxica
É claro que as pautas do programa são determinadas em parte pela escolha do elenco feita pelo diretor Boninho e sua equipe. Quando escolhe Linn da Quebrada como participante, é nítido que há um desejo de que sua presença repercuta nos outros. Por isso, os episódios transfóbicos que ocorrem com ela, por menores que possam parecer (o uso de “ele” ao invés de “ela”), interessam porque não se referem apenas a Linn, mas a todas as travestis e mulheres trans desrespeitadas cotidianamente no Brasil. Se está acontecendo na casa, é porque acontece fora dela.
Por isso tudo, por mais que essas pautas sejam importantes (a transfobia contra Linn; a “rejeição” de Natalia, participante negra com vitiligo, pelo branco Lucas, que mantinha uma relação de proximidade com ela durante todo o dia e acabou assumindo romance com uma mulher “padrão”), há outra discussão que, para mim, tem se tornado mais relevante.
Falo sobre as críticas feitas por quase todo mundo que assiste ao programa à “positividade tóxica” de Tiago Abravanel (mas endossado por outros participantes), cujos diálogos com outras pessoas são sempre na base do estímulo à paz e à fuga dos conflitos. Quase como se houvesse uma pane na Matrix: se, por um lado, esses participantes são colocados no Big Brother Brasil para brigarem entre si, ele tenta organizar um levante em prol de um BBB do bem, que escape da podridão que o mundo se tornou (palavras dele). Por consequência, já teve até roda de oração dentro desta edição.
Abravanel tem sido acusado de ser um “inimigo do entretenimento”, expressão que, dentro do universo BBB, designa as pessoas que colaboram para que o programa fique chato e sem graça. Por outro lado, Tiago se posiciona como uma espécie de rebelde, como se tivesse mais consciência que os outros de que está sendo usado em prol de uma diversão de baixo nível (em oposição ao entretenimento de “alto nível” – o que seria ele?)
Faz sentido esta cobrança do neto de Silvio Santos? Creio que a falha do raciocínio aqui é a concepção rasa de conflito que Tiago carrega na sua positividade de unicórnio. Isto porque a vida social, para que ela exista, é sempre confronto. Mais nociva que a “podridão” do mundo, termo com que Tiago Abravanel nomeia o que ele considera prejudicial no BBB e na vida, é a recusa desesperada de olhar para o que é “podre”. Como se fechar os olhos para o que é tipicamente humano fosse uma solução inteligente. Mas, por sorte, a positividade tóxica não vinga muito tempo neste programa. Aguardemos cenas dos próximos capítulos.
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