A ocasião do dia internacional da mulher, 8 de março, é sempre um momento aproveitado para celebrar o feminino e tudo aquilo que lhe diz respeito. Não à toa, é uma data em que assistimos a uma espécie de overdose de frases emotivas, imagens cor-de-rosa e flores vendidas a 5 reais em cada semáforo. Entretanto, de uns anos para cá, um discurso se tornou mais recorrente: o de que esta data deve servir para conscientizar a sociedade sobre o que passam as mulheres, e não apenas para espiar a culpa sobre atitudes sexistas realizadas nos outros 364 dias do ano.
Por isso mesmo, as iniciativas mais “agressivas” (no sentido de mais explícitas e óbvias, menos voltadas à mera homenagem vazia) aumentaram nas mídias neste último 8 de março. Considero, é claro, que esta é uma mudança bastante positiva pois há aqui uma chance de que a data realmente sirva para algo útil: trazer algum tipo de consciência às pessoas sobre pequenos e grandes abusos que, até pouco tempo, eram invisíveis e mesmo entendido como naturais. E isso, sem dúvida, é mais importante que ganhar flores ou chocolate.
Mas ter consciência nem sempre é, de fato, saber como se sente uma mulher. Frente a isso, alguns canais de televisão fizeram iniciativas interessantes neste dia, e uma das mais impactantes talvez seja uma ação bem breve, mas efetiva. Falo do quadro “Leitura de Comentário”, veiculado dentro do programa Fala Muito!, do canal SporTV (veja aqui o vídeo). O quadro teve uma proposta muito simples: a de fazer seus jornalistas (homens) lerem os comentários recebidos nas redes sociais por jornalistas (mulheres) quando realizam seus ofícios – ou seja, fazem reportagens sobre esporte. A cena assistida é a de uma série de homens constrangidos ao lerem xingamentos emitidos às suas colegas por outros homens, sob a proteção do anonimato proporcionado pelo obscuro mundo das redes digitais.
A ação chama a atenção justamente pelo espaço em que ela ocorre. Ela não transcorre dentro de um telejornal generalista, nem de um programa de variedades, mas sim de um “universo” tido historicamente como um território exclusivo do masculino: um canal de jornalismo esportivo. E as mulheres que participam do vídeo – Glenda Kozlowski, Ana Helena Goebel, Ana Thaís Matos e Bárbara Coelho – são, de certa forma, “invasoras” não apenas neste excludente lugar masculino, mas naquilo que ele tem de mais sagrado: elas ousam falar de futebol.
O quadro é impactante. Não há uma grande produção, mas apenas duas cadeiras num cenário dramaticamente escuro em que dois jornalistas, um homem e uma mulher, sentam na frente um do outro, numa espécie de confronto. No vídeo, vimos e ouvimos os quatro jornalistas convidados – os conhecidos profissionais da SporTV Marcelo Barreto, Richard Souza, Rodrigo Rodrigues e Fred Ring – tentarem declamar, embaraçados, as ofensas que foram direcionadas a essas profissionais. Dentre palavrões e termos de baixo calão, o que eles reproduzem, lendo os comentários, são manifestações misóginas, como “jogo de futebol é coisa de homem desde sempre” e “foram vocês, mulheres, que quiseram invadir um espaço exclusivo para os homens”.
O “prato” oferecido nesse quadro, assim como em tantas ações publicitárias semelhantes, é a autenticidade. É o constrangimento dos repórteres e a impaciência genuína das jornalistas.
É bom lembrar que, historicamente, entendeu-se que o futebol – e especificamente o seu “altar” máximo, o estádio – era um refúgio para que a masculinidade pudesse ser expressada sem barreiras. É lá que o cidadão comum ia para despejar sua agressividade, a partir do extravaso de um sentimento que ficava retido em outros lugares durante a sua lida diária. Qualquer pessoa que já foi a um estádio já viu que boa parte de quem está lá quer transbordar suas emoções (e não necessariamente as mais nobres delas).
Mas aí algo foi acontecendo aos poucos: as mulheres começaram a ocupar este espaço, como tantos outros, reivindicando que podem sim estar em todos os lugares, e não apenas naqueles que foram reservados a elas – pela ação masculina, é claro. Talvez em nível inconsciente, há uma reação coletiva de uma masculinidade que foi ameaçada. Como a jornalista Eliane Brum explicou com muita precisão em um texto recente, a reação do homem heterossexual, em uma assumida generalização, foi de terror: “como reação (às pressões do ‘politicamente correto’ e a busca das mulheres por igualdade), surgiram proposições como criar o ‘Dia do Orgulho Heterossexual’ ou o ‘Dia do Homem’ e até o ‘Dia do Branco’. Não faz sentido criar datas para quem tem todos os privilégios, mas as propostas apontam como mesmo a perda destes privilégios em particular parece balançar o mundo de quem sempre teve a coleção completa de vantagens como direito inalienável”.
E conclui Eliane: “o que a maioria dos homens entendia como direito – falar o que bem entendesse, especialmente para uma mulher – já não era possível”. E é esse “homem sem data” que aparece representado nas mensagens lidas pelos apresentadores da SporTV: o homem desnudo em sua misoginia não assumida, o que tenta desqualificar a mulher pelo artifício que é mais caro a ele, a sexualidade, como bem constata Marcelo Barreto durante o quadro. As vozes anônimas da internet acusam as mulheres de terem se relacionado com alguém para estar ali onde estão.
O “prato” oferecido nesse quadro, assim como em tantas ações publicitárias semelhantes, é a autenticidade. É o constrangimento dos repórteres e a impaciência genuína das jornalistas. Elas respondem visivelmente cansadas de terem que lidar com esse tipo de manifestação. Algumas, inclusive, não acham outros recursos além de revidar com a mesma linguagem agressiva dos xingamentos. Glenda Kozlowski, em especial, mostra-se evidentemente irritada e responde em termos sexuais.
Chocante, o quadro do Fala Muito! cumpre o importante papel de levar uma mensagem bastante explícita dos constrangimentos diários sofridos pelas mulheres em sua profissão e em todos os demais espaços que elas ocupam. No entanto, o formato de confronto simulado, pelas palavras geradas por outrem, traz uma certa impressão de não ser o suficiente. Com alguma sacada, o apresentador Fred Ring conclui: “nós, homens, não temos ideia do que passa no dia de uma mulher que trabalha com esporte”. E não parece que apenas ler ofensas anônimas seja o suficiente para mudar isso.