Nas semanas anteriores, discutimos nesta coluna alguns dos impactos trazidos por essa crise humanitária sem precedentes que vivenciamos hoje. A pandemia de Coronavírus está reconfigurando a vida em sociedade no mundo todo, e é claro, como já dissemos antes aqui, que isso também causa mudanças na televisão, que agora se confronta com uma série de limitações técnicas e precisa repensar seu funcionamento.
Muitas pessoas têm declarado que preferem não assistir à televisão nesse período pois se sentem mais estressadas com a realidade. Manifestam, portanto, um incômodo sobre um suposto “excesso de realidade”, como se a informação também tivesse limite – ao ultrapassá-lo, a informação pararia de informar e deixaria de ser útil à população. A discussão aqui é importante pois pensamos nos efeitos da comunicação, que sempre beiram o imponderável. A TV fica assim numa corda bamba: será que é necessário encher a programação de jornalismo ou é importante que o alívio do entretenimento (em programas estilo reality shows, novelas, reprises, etc.) não deixe de ser também prioridade?
Ao longo desta pandemia, a televisão já atravessou diferentes etapas: a dificuldade nas gravações com programas que envolvem grande quantidade de pessoas e que, por isso, trazem riscos; as decisões tomadas sobre interromper algumas atrações e reprisar outras; as mudanças nas grades, passando a priorizar os jornalísticos; as alterações nos modos de captação e edição, utilizando muitas transmissões feitas de forma amadora na casa dos repórteres ou dos entrevistados. Agora, creio, chegamos a uma outra fase.
Ainda que talvez tudo pareça o mesmo por mais uma semana consecutiva, a verdade é que algo mudou: começaram a aparecer nos telejornais as vítimas do Covid-19. Se outrora elas apareciam apenas como números, estatísticas, a partir dessa semana que se encerrou, elas passaram a ter nome e sobrenome, história, família. As trajetórias terminadas precocemente, de forma trágica, ganham corpo por meio da voz de seus parentes. Cada vez mais, os jornais têm trazido vídeos de pessoas que choram por seus familiares, nomeiam seus mortos e, por consequência, tiram-nos da invisibilidade de um número.
Obviamente, isto é um dado relevante por vários aspectos. O primeiro deles, é claro, tem a ver com dar peso à tragédia – contrapondo, por exemplo, estratégias do discurso do próprio presidente da República, quando diz que “infelizmente algumas mortes terão, paciência” ou “não sou coveiro”. Sua fala impulsiva, por fim, desnuda uma dificuldade humana: a forma mais fácil de lidar com uma tragédia dessa dimensão é “descorporificá-la”, torná-la um dado manejável, uma estatística (é mais fácil dizer “paciência” se essas mortes não se relacionam comigo), com a qual não me envolvo.
Em outras palavras, as imagens dos mortos (seja em uma foto, seja no relato de seus parentes) são fortes e necessárias justamente porque conotam a nossa completa ineficiência em compreender aquilo que passamos.
O segundo aspecto tem a ver com o possível impacto desses novos relatos que começamos a assistir: o da mãe que chora, do filho que vela o pai, da criança que ainda não entende o que ocorreu, do familiar em estado de choque por uma perda que parece mentira. O que vemos nos telejornais, até o momento, são imagens que reproduzem o nosso torpor frente a este momento histórico. Ao vermos mães de máscara enterrando seus filhos em cemitérios superlotados, ou um jovem contando, de forma relativamente objetiva, sobre os sintomas do pai que morreu, temos a certeza que nós, vítimas em vários sentidos, estamos longe de entender sobre o que significa a tragédia que atravessamos.
Em outras palavras, as imagens dos mortos (seja em uma foto, seja no relato de seus parentes) são fortes e necessárias justamente porque conotam a nossa completa ineficiência em compreender aquilo que passamos. Ainda parece ficção – e uma das poucas chances que temos de trazer a tragédia ao plano do real, como algo que acontece conosco e não apenas do lado de fora de nossas janelas, envolve começar a ver, ouvir e respeitar os mortos.
Há um conceito, chamado de “retorno do real”, do pensador Hal Foster, que diz o excesso de exposição a imagens reais (quando eu vejo, por exemplo, imagens de mortos em guerra, ou de crianças morrendo de fome) acaba por enfraquecer a força desses registros. Por isso mesmo, me parece que a tônica atual da televisão (que, lucidamente, se baseia nas narrativas e não na imagem forte – de um corpo desfalecido, por exemplo) é mais eficiente e pode, aos poucos, afastar esta pandemia de um caráter fantasmagórico (algo que sei que existe, mas não vejo).
O drama real finalmente chegou à televisão, saindo do jornalismo de prevenção e começando a documentar a morte. Só assim, me parece, temos alguma chance de que a ficha caia e saiamos do conforto que existe em acreditar que “não somos coveiros”.