Poucos formatos televisivos parecem tão universais como o dos reality shows. Nós, brasileiros, assim como os norte-americanos, parecemos irresistivelmente seduzidos para as inúmeras variantes de programas que prometem revelar a suposta “realidade”, ou seja, tudo aquilo que faz irromper à tela o “verdadeiro eu” das pessoas que são enfocadas. Acreditamos que nos reality shows “tudo é roteirizado” – ou, numa variante mais atualizada, que ninguém é mais ingênuo o suficiente para tirar a “máscara” de cordialidade em rede nacional – mas, ainda assim, parecemos quase que hipnotizados frente a estes programas (ou tente explicar por que tantas vezes não conseguimos desligar de um programa sobre nada como o Big Brother Brasil).
Os reality shows, portanto, são alimentados por essa espécie de pulsão pelo real que habita em todos nós. A promessa de ver algo que de fato aconteceu no mundo, ao invés de ver um mundo totalmente imaginado na ficção, nos arrebata. Basta ver, por exemplo, o quanto nos sentimos persuadidos a ver um filme ou a ler um livro ao descobrirmos que ele é “baseado em fatos reais”.
É nessa onda que estreia um novo reality show pela FOX Life, chamado Corre e Costura, estrelado pelo estilista Alexandre Herchcovitch, um dos profissionais da moda mais importantes do Brasil. Desligado recentemente da marca que leva o seu nome, Herchcovitch é uma espécie de unanimidade no universo da moda, famoso pela marca autoral de seu trabalho, simultaneamente sofisticado e complexo, mas sempre extremamente urbano, moderno e algo soturno. Para além da roupa, ele ainda se consolidou como um nome ligado ao design de produtos, com coleções que vão desde roupas de cama, louças, até relógios e óculos. Recentemente, produziu uma elogiadíssima coleção para a loja de fast fashion C&A.
Corre e Costura é uma variação dos reality shows de competição, com um detalhe inusitado: o protagonista é apenas Herchcovitch e ele compete consigo mesmo. Em cada episódio, recebe um desafio de moda (não sabemos de quem e nem qual será a “punição” caso falhe): deve confeccionar uma roupa original para algum personagem convidado, em um curtíssimo espaço de tempo (48 horas) e orçamento limitadíssimo para o glamoroso mundo da haute couture. Além disso, deve ter a peça aprovada pelo exigente cliente ao final do trabalho.
No primeiro episódio, por exemplo, Alexandre deve criar um novo uniforme para um time centenário de futebol de várzea. No segundo, precisa elaborar um vestido de gala para uma mulher que perdeu quase 100 quilos e continua insegura quanto ao seu corpo. No terceiro, deve bolar uma roupa para uma fisiculturista que participará de um cruzeiro de luxo e quer ressaltar sua feminilidade. Para auxiliá-lo, conta com apenas dois auxiliares: sua mãe Regina e o amigo/assistente Rhody.
Em suma, o desafio é deveras interessante: o estilista deve ser coerente com a marca autoral que consolidou sua reputação e, ao mesmo tempo, criar um figurino para alguém totalmente desconectado do mundo da moda. De alguma forma, o jogo é encontrar um equilíbrio entre alta cultura e cultura popular, construindo uma ponte entre um trabalho cujas referências são bastante herméticas e uma estética mais democrática e acessível. Não por acaso, em todos os episódios, um “aliado” da pessoa escolhida – por consequência, uma espécie de “rival” de Alexandre e sua equipe – é convidado para fiscalizar o processo de produção e ficar dando palpites (geralmente mal humorados) sobre o que vê.
A discussão sobre moda, portanto, é extremamente rica e se estende – ainda que de forma sutil – para todo o universo da cultura. Nas entrelinhas, Corre e Costura pergunta: até que ponto os grandes artistas, os hors concours de suas áreas, conseguem produzir algo que toca o coração do povo? É este, afinal, um dos temas provocados pelo reality show. Fez-me lembrar, aliás, do magnífico experimento realizado em 2007 em um metrô de Nova York, quando Joshua Bell, um dos maiores violinistas do mundo, puxou seu instrumento e tocou várias músicas na hora em que as pessoas corriam apressadas pelo trabalho. O objetivo era verificar quantos transeuntes parariam comovidos pela qualidade da música e quanto dinheiro o virtuoso instrumentista arrecadaria, em comparação a tantos outros artistas de rua com quem dividia o espaço. Ou seja, testava-se ali a reação da população frente ao belo, e se as pessoas comuns saberiam reconhecer “pérolas” quando expostas a elas.
Os excessos da trama narrativa de Corre e Costura criam desconforto ao se oporem justamente à precisão e à elegância da roupa de Alexandre Herchcovitch.
Se Corre e Costura funciona bem enquanto experiência sociológica, o mesmo não se pode dizer enquanto reality show. Para um público já extremamente familiarizado com os realities, o programa falha em oferecer a matéria prima básica deste tipo de atração: autenticidade. A narrativa construída pela edição é claramente forçada, tentando criar um clima de tensão que nem sempre convence.
Os personagens fixos, por exemplo, são excessivamente marcados. Regina Herchcovitch é sempre enfocada fazendo algum tipo de comentário azedo acerca dos convidados, como uma espécie de pequena vilã. Já Rhody é colocado apenas como alívio cômico da trama, numa performance sempre exagerada, tal qual um Titus Andromedon (personagem de Tituss Burgess em Unbreakable Kimmy Schmidt). Seus confrontos com Alexandre – Rhody é o encarregado de fazer as compras para a roupa a ser criada, e sempre comete algum erro – soam calculados, algo fictícios.
Daria para dizer que os excessos da trama narrativa construídos na edição causam desconforto ao se oporem justamente à precisão e à elegância da roupa de Alexandre Herchcovitch, um mestre da alfaiataria e dos cortes rigorosos, que adquirem sua força exatamente pela lógica de que “menos é mais”.
Ainda assim, o programa configura como um perfeito guilty pleasure e, mais do que isso, a oportunidade rara de assistir de camarote ao processo de criação de um dos nomes mais geniais da produção artística autoral (e comercial) do país.