Era questão de tempo para que Desventuras em Série virasse, enfim, uma série de TV. Diferentemente do longa-metragem de 2004, que sofreu com problemas no roteiro e demissão de produtores, inclusive do próprio autor dos livros, Daniel Handler, a série da Netflix consegue entregar o tom correto e fazer uma boa adaptação dos livros de Handler, mesmo que soe repetitivo em alguns momentos.
Para quem não conhece, Desventuras em Série é uma coletânea de 13 livros escrita por Lemony Snicket, pseudônimo do autor Daniel Handler. Os livros tratam das aventuras de três crianças, os órfãos Baudelaire, após a morte de seus pais em um incêndio. A ambientação da história é anacrônica e repleta de alusões literárias e culturais.
Desenvolvido por Mark Hudis, sob supervisão de Handler, Desventuras consegue trazer a ótima premissa dos livros em oito episódios divertidos, sem deixar de mostrar as infelizes sequências de desgraças que ocorrem com as três crianças órfãs. Há quase uma sugestão de incesto, assassinato, incêndio, trabalho escravo, tudo isso envolto por uma fotografia escura, gótica e depressiva. É uma história para crianças sobre o terrível mundo dos adultos. E nós assistimos por conta e risco, já que o roteiro nos mandar desligar a TV (ou o streaming), mudar de canal e não acompanhar histórias tão depressivas.
![desventuras em série órfãos baudelaire](http://www.aescotilha.com.br/wp-content/uploads/2017/02/desventuras_em_serie2.png)
Ao invés de utilizar um livro para cada temporada, a Netflix começa acertando ao dedicar dois episódios para cada livro, com duração de cerca de 40 minutos cada um, tempo suficiente para que os principais fatos das obras sejam transpostos para a tela. Dessa forma, conseguimos conhecer todos as crianças Baudelaire e suas características: Violet (Maline Weissman) é uma ótima inventora, Klaus (Louis Hynes) é um exímio leitor e Baby Sunny (a fofa Presley Smith) consegue morder tudo o que vê pela frente, desde cordas até árvores, além de ter uma engraçada forma de comunicação que apenas os irmãos entendem. Todos são inteligentíssimos e nada bobos. No olhar das crianças, os adultos são os imbecis. Por isso,os órfãos são os únicos que veem o mundo como ele realmente é e quase todos que cruzam seus caminhos são malvados e aproveitadores.
Teatral e lúdica, Desventuras em Série pega toda a inteligência do autor para formar diálogos que vão desde uma longa discussão sobre gramática até a definição sobre o que é a própria série
Para personificar todo o mal do mundo, a série apresenta Conde Olaf, vivido por Neil Patrick Harris, que carrega a missão de não fazer uma cópia de Jim Carrey, que interpretou o mesmo personagem em 2004. Felizmente, Harris não tenta imitar os trejeitos de Carrey. Se a interpretação do primeiro realmente assustava, Harris prefere assumir e acentuar a teatralidade do personagem e exagera (no bom sentido) em cada cena. E quando o personagem vai para a comédia ao usar disfarces mal feitos para enganar as crianças, o ator acerta ainda mais no tom cômico e irônico.
Mas a série se destaca mesmo quando consegue fazer um jogo de palavras delicioso. Extremamente teatral e lúdica, Desventuras em Série pega toda a inteligência do autor para formar diálogos que vão desde uma longa discussão sobre gramática até a definição sobre o que é a própria série. É televisão? É streaming? É ano, temporada ou episódios? Contando com um excelente narrador, vivido por Patrick Warburton, o recurso enriquece as histórias e serve como uma ótima quebra da quarta parede. Com isso, a série consegue trazer a visão pessoal do autor dos livros de maneira muito inteligente e sempre sutil. Percebam como o roteiro fala da crise econômica dos EUA e vai até os problemas pessoais do próprio Lemony Snicker. E quando tudo parece fantasioso demais para o público, a história mostra um adulto estapeando uma criança, algo que choca mesmo em uma série que disfarça a maldade real com uma fotografia bonita e um tanto infantil.
![neil patrick harris desventuras em série](http://www.aescotilha.com.br/wp-content/uploads/2017/02/desventuras_em_serie3.png)
Visualmente, a série entrega um presente para os fãs ao trazer o diretor Barry Sonnenfeld (MIB – Homens de Preto) para comandar os quatro primeiros episódios. Originalmente cotado para dirigir o longa-metragem, Sonnenfeld precisou se afastar do filme. Agora, prova que era o cara ideal. Junto com Bo Welch, que assina o design de produção, o diretor cria um universo cartunesco, repleto de alusões culturais, respeitando a ideia do livro. Há referências ao O Gabinete do Dr. Caligari na mansão de conde Olaf e Zumbi Branco nos episódios que contemplam o livro Serraria Baixo-Astral. Além disso, a série ainda nos traz de volta ao universo da subestimada Pushing Daisies, que carregava o mesmo estilo de direção lúdica e fascinante. Há, ainda, alguma referência aos estilos de Tim Burton e Wes Anderson, mas sem jamais soar como cópia.
Desventuras em Série só comete alguns deslizes em seu ritmo. Ao assistir os episódios na sequência, há uma incômoda repetição de temas e situações, algo que talvez não fosse tão gritante em episódios semanais, por exemplo. Alguns episódios também são demasiadamente longos, quase sonolentos durante a metade da história. As crianças também começam um tanto quanto travadas no início, mas depois ganham naturalidade, ainda que precisem mostrar mais desenvoltura na tela.
Mesmo com pequenos problemas, Desventuras em Série é um excelente exemplo de como uma adaptação pode respeitar a obra original e ainda trazer aspectos que enriquecem a narrativa. Como uma liberdade criativa que só a televisão pode proporcionar, tanto os órfãos Baudelaire quanto os fãs podem ter certeza que as desventuras serão mostradas até o fim.