Talvez o discurso do empreendedorismo nunca tenha estado tão forte no Brasil. Mas a ênfase nesse assunto está diretamente ligada à situação do país: um cenário de precarização do trabalho, em que uma reforma trabalhista diminuiu os direitos dos empregados, e o enfrentamento da pandemia de Covid-19 foi feito sem qualquer proteção a esse mercado por parte do governo. Um reflexo desta crise são matérias como esta do jornal Folha de São Paulo, que mostra que o aumento de trabalho autônomo se dá também entre pessoas diplomadas, que teoricamente seriam mais disputadas por empresas.
Este panorama repercute também na televisão. O fascínio pelo empreendedorismo está presente em alguns programas na grade das emissoras e também nas plataformas de streaming. Em comum, estas atrações tentam trazer uma energia “empolgante” acerca do trabalho autônomo, que seria cercado de desafios, competições e conquistas diárias – por consequência, seria praticamente o oposto do salário assalariado. Acima de tudo, a ideia associada a esse tipo de trabalho é a do sonho.
Empreendedorismo como resposta à crise

O programa mais antigo nesta seara (e o melhor) é o Pequenas Empresas, Grandes Negócios, da Globo. Ele é exibido na grade da emissora desde 1988 – antes de qualquer romantização acerca do trabalho autônomo. Ainda assim, vale destacar que ele também surgiu em momento de crise: na década de 1980, durante o governo Sarney, o Brasil enfrentava inflações que ultrapassavam 200% ao ano.
Não há dúvida que é realmente fascinante pensar na possibilidade de trabalhar para si mesmo, e não para empresas que lucram muito mais que os seus empregados.
A crise, inclusive, impactou na continuidade do programa: entre 1990 e 1991, o Pequenas Empresas, Grandes Negócios saiu do ar durante o governo Collor. Retornou em março de 1992, e desde então, é transmitido pela Globo nos domingos pela manhã, antes do Globo Rural – criando uma espécie de continuidade interessante entre o mundo dos negócios individuais e o mundo do campo.
Talvez o Pequenas Empresas, Grandes Negócios, por conta de sua história (que envolve ter passado por diversas eras da política brasileira) tenha a abordagem mais sóbria do trabalho autônomo. Por mais que o programa também bata na tecla dessa palavrinha mágica do “sonho” (afinal, todos os negócios trazidos ao PEGN são apresentados como bem-sucedidos), os repórteres e a edição do programa se encarregam por não criar uma idealização excessiva deste universo. A atração, de toda forma, tem como um possível defeito a falta de um esclarecimento maior de sua relação com os anunciantes – em especial, os bancos.
O programa mais “clássico” nesta seara do empreendedorismo é a franquia Shark Tank, exibido no Brasil pelo canal Sony. Conforme já analisado nesta coluna, o Shark Tank Brasil leva a premissa do mercado autônomo enquanto uma disputa emocionante ao máximo: traz a ideia de um mar repleto de tubarões, doidos para devorar uns peixinhos, mas que mesmo assim vale a pena se jogar. Nem que seja à custa de anos de economias pessoais.
Disputa entre concorrentes

A novidade neste gênero é o recém-lançado Ideias à venda, apresentado por Eliana na Netflix. É uma mistura de todos os programas anteriores: nele, pequenos empreendedores trazem seus produtos para convencer uma bancada com dois jurados e uma plateia de 100 pessoas (numa dinâmica que lembra o Canta Comigo, da Record) sobre qual deles seria mais viável no mercado.
Há algumas poucas novidades aqui. Uma delas é que não se tratam necessariamente de produtos inovadores – em um episódio dedicado ao mercado pet, um dos negócios é uma linha de biscoitos para cachorros. Em relação ao Shark Tank, o Ideias à venda foca mais nos próprios empreendedores, que devem “duelar” uns com os outros apresentando o seu trabalho e colocando questões aos adversários (numa dinâmica que lembra um pouco uma banca de TCC). No fim, a lábia, associada à narrativa (ou, no termo mais típico do universo do empreendedorismo, o storytelling) colocada pelo dono do negócio, costuma pesar na decisão da plateia sobre quem levará o prêmio de 200 mil reais.
Não há dúvida que é realmente fascinante pensar na possibilidade de trabalhar para si mesmo, e não para empresas que lucram muito mais que os seus empregados. Há algo associado ao onírico e mesmo ao lúdico quando pensamos nesta modalidade de trabalho. A grande questão é pensar como a televisão pode abordar isso sem fechar os olhos para o fato de que a ênfase no discurso empreendedor é também um reflexo de um mundo em que as relações trabalhistas estão cada vez mais precarizadas.
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