Durante a semana passada, talvez nenhum fato tenha reverberado tanto na televisão quanto a presença de Felipe Neto no tradicional programa de entrevistas Roda Viva, da TV Cultura. Creio ser possível dizer que nenhum outro nome recente no programa causou tamanha expectativa. Políticos não foram esperados assim como foi o youtuber. Mesmo antes de ocorrer, essa entrevista já havia sido categorizada no portal UOL como “histórica”.
Mas por que tamanha comoção? A razão talvez seja difícil de explicar, ainda que todos os “habitantes” do universo digital entendam instintivamente. Felipe Neto se tornou uma espécie de símbolo cultural, de alguém que ficou gigante no ramo do entretenimento juvenil, e que angariou um poder de persuasão comparável a pouquíssimas pessoas do mundo. Este patrimônio, no entanto, foi construído de forma difusa, não pelos chamados “tradicionais” meios de comunicação de massa, mas pela internet, numa premissa individual, em seu próprio canal no Youtube. Se formos medir pela “moeda” de número de seguidores, podemos dizer que Felipe Neto atinge praticamente o dobro de pessoas que o presidente da República.
Este é o primeiro ponto. O segundo é que Felipe Neto, mesmo tendo criado um “feudo” digital do entretenimento bobo, calcado diversas vezes em piadas de mau gosto, com viés machista ou homofóbico, resolveu tornar-se uma voz política forte, antigoverno e contra os discursos conservadores de direita propagados hoje por boa parte dos governantes eleitos. Teve bastante repercussão, em 2019, quando o youtuber comprou 10 mil livros de temática LGBT para distribuir gratuitamente na Bienal no Rio, em um ato de repúdio à decisão do prefeito Marcelo Crivella em apreender um livro com um beijo gay. Já neste ano, Felipe Neto veio a público para defender que outros influenciadores, como ele, se posicionassem publicamente contra o atual governo, e que, se não fizessem, seriam coniventes com o fascismo que ele propaga.
Felipe Neto se tornou uma espécie de símbolo cultural, de alguém que ficou gigante no ramo do entretenimento juvenil, e que angariou um poder de persuasão comparável a pouquíssimas pessoas do mundo.
Pois bem: em parcas linhas, talvez esse seja o cenário que sedimenta a chegada de Felipe Neto ao mais respeitado programa de entrevistas do país, reservado apenas a grandes nomes e a entrevistadores dispostos a escrutiná-los sem receio. Mas retomo novamente as oportunas palavras do jornalista Matheus Pichonelli, no UOL, ao expressar que o programa evidenciava uma “pororoca” entre “dinossauros e jovens influencers”. Ou seja, a expectativa em torno deste Roda Viva é porque veríamos, in loco, a televisão recebendo um espécime da internet, e seria capaz de testá-lo em sua eficácia. A verdade é que gente como Felipe Neto tem mais poder de comunicação do que todos os “dinossauros” são capazes de admitir. E qual o segredo para que ele tenha criado isso, de uma forma orgânica? Essa é a grande incógnita.
No programa em si, o que assistimos é um verdadeiro fenômeno: um jovem comunicador extremamente preparado a falar a um público massivo. De início, parecia nervoso (Felipe Neto parecia “negociar” uma performance entre o sério e o engraçadinho, buscando um tom adequado). Durante a mais de uma hora de entrevista, Neto se revelou muito claro, seguro e ciente dos processos comunicacionais que o cercam. Pouco pressionado pelos entrevistadores (as perguntas eram boas, mas razoavelmente fáceis), o youtuber parecia espontaneamente calculado em suas respostas – se é que isso faz sentido. Calejado na chamada “cultura do cancelamento” digital, Neto também pediu desculpas reiteradamente sobre os erros cometidos no passado (o que nos levaria a pensar: em que medida as desculpas – que são o mínimo – são suficientes para dirimir danos reverberados por falas nocivas que circularam massivamente?). Sem formação universitária formal aparente, explicou, de maneira muito didática, as razões que explicam a eficiência do marketing do governo, por mais obscura e violenta que seja a mensagem que ele carrega.
Em suma, eu diria que Felipe Neto, para desespero de muitos de nós, deu ali uma aula de comunicação. Demonstrou que os grandes influencers, esses famigerados famosos, só assim o são porque descobriram os caminhos de uma linguagem que vai ao encontro de seu destinatário de maneira muito competente – e talvez com maior eficácia do que a TV um dia já conseguiu. Negar isso, a essa altura do campeonato, talvez seja enxugar gelo. Palmas ao Roda Viva e à TV Cultura que, ao ceder seu palco a um nome como Felipe Neto, dão pistas de que estão abertos a pensar criticamente a televisão.