O tema dessa coluna era outro, mas é inevitável aproveitar esse espaço para falar da morte da escritora Fernanda Young e da perda lastimável que isso representa para a televisão brasileira. Fernanda teve sua vida encerrada precocemente, aos 49 anos, e de uma forma que parece estúpida (com uma parada cardíaca após ter uma crise de asma).
Os lamentos sobre a sua morte têm tomado as redes sociais e devem repercutir muito nos próximos dias. É importante lembrar que, embora tenha sido uma pessoa pública – uma mulher forte, avessa à docilidade que se acredita ser natural ao feminino, e que expos sua figura tantas vezes à frente de programas como Saia Justa e Irritando Fernanda Young, ambos no GNT – a escritora fez uma grande obra constituída nos bastidores da televisão, especialmente nos textos de humor. Junto com seu marido, o roteirista Alexandre Machado, escreveu algumas das obras mais marcantes na memória televisiva. Nem sempre Fernanda e Alexandre geraram os programas mais populares, mas certamente foram responsáveis por alguns dos roteiros mais inventivos e ousados que chegaram ao grande público.
Exuberante, Fernanda era ela mesma um ser televisivo, icônico, indomável – associando-se a todo um legado de mulheres fortes, indóceis, que se recusavam a se adequar às convenções sociais esperadas a elas.
A lista de programas roteirizados por eles é grande, e impossível de ser abordada num único texto. Nem todos, é claro, atingiram o mesmo sucesso – a assinatura da dupla nem sempre assegurou a consonância com o desejo do público. Séries como O Dentista Mascarado, a esperada estreia do comediante Marcelo Adnet na Globo, foi mal recebida pela crítica e obteve resultados ruins no Ibope. Mas mesmo os “fracassos” nos serviram para lembrar que a televisão é marcada pelo imponderável: por lidar com uma grandissíssima audiência heterogênea, não há fórmulas garantidas para o sucesso.
Por isso mesmo, quando um programa se torna um grande sucesso num país continental, e permanece no imaginário coletivo da população, é como se acontecesse uma espécie de milagre. E foi isso que ocorreu em Os Normais, um seriado de humor que duraria apenas três meses e acabou rendendo três temporadas. Com episódios curtos e dinâmicos, Os Normais continua um êxito estrondoso, mesmo 16 anos depois de seu encerramento. O texto afiado de Fernanda e Alexandre se deleitava com a mesquinhez dos protagonistas, vividos por Fernanda Torres e Luiz Fernando Guimarães, dois neuróticos que não se separavam, ainda que mais se aguentassem do que realmente se amassem. Rui e Vani viraram cult principalmente porque representavam o pior de cada de um nós – numa clara reverência ao texto de Seinfeld, que praticamente fundou a era das séries icônicas sobre “nada”, centralizadas em personagens algo medíocres.
Na esteira do sucesso de Os Normais, veio Minha Nada Mole Vida (2006) e o quadro “Super sincero” (2004), dentro do Fantástico, ambos com Luiz Fernando Guimarães (o intérprete de Rui). A marca do deboche continuava presente: a primeira satirizando o universo vazio das celebridades e da burguesia anêmica do high society; a segunda escancarando as convenções sociais e os filtros que nos separam da barbárie (de alguma forma antevendo um país em que ser “super sincero” seria visto como virtude). A burrice da burocracia seria ainda ridicularizada em Os Aspones (2004) e Odeio Segundas (2015). O olhar brilhante sobre relacionamentos rendeu ainda sua última obra televisiva: a doce (e engraçadíssima) Shippados, lançada este ano na plataforma Globoplay.
Curiosamente, esse interesse pelo “normal” (pelo cotidiano e o quanto ele tem de patético) enquanto tema de seus textos para TV passava bem longe da persona que a própria Fernanda Young incorporava. Exuberante, Fernanda era ela mesma um ser televisivo, icônico, indomável – associando-se a todo um legado de mulheres fortes, indóceis, que se recusavam a se adequar às convenções sociais esperadas a elas.
Não por acaso, Fernanda atravessou a vida sendo vitimizada pelo machismo, seja pela desconfiança de que os textos seriam todos de seu marido, e ela apenas sua assistente; seja pelo preço que pagou por possuir seu próprio corpo e expô-lo sempre que quis. Ela era uma mensagem incômoda, agressiva, uma polemista carregada de referências literárias. Por isso tudo, sua presença fará falta e promete mobilizar uma legião de fãs ainda maior.
Num desfecho totalmente inesperado, Fernanda morreu sem avisar, quase que ironicamente (pois seu marido, no ano anterior, enfrentou um gravíssimo problema de saúde, mas acabou se recuperando). Se sua morte fosse uma cena de um romance seu, talvez parecesse inverossímil. Se fosse uma cena de uma de suas séries, seria de humor negro. Resta o seu legado para a boa televisão e a expectativa de que sua obra inspire ainda muitas outras.