Várias vezes, em análises da Escotilha, discorremos sobre a onda crescente de obras dentro do espectro true crime, que fascina muita gente por recontar histórias de crimes que realmente aconteceram. O fato de que esse gênero tem sido super explorado (muitas vezes, em prol de um certo prazer questionável de saber que aqueles fatos ocorreram com outras pessoas, e não conosco) não significa que não possa haver boas produções. O documentário A Vítima Invisível: O Caso Eliza Samudio é um caso de uma obra de grande qualidade, por diferentes aspectos.
Com direção de Juliana Antunes, o longa da Netflix acerta, primeiramente, por conta da relevância do tema: ele fala da morte em 2010 de Eliza Samudio, modelo que foi amante do goleiro Bruno, então uma estrela em ascensão no Flamengo. Eliza havia tido um filho com o jogador, e havia denunciado publicamente as ameaças que recebeu de Bruno e dos asseclas que o cercavam.
O caso, com toques de filmes de horror, foi amplamente noticiado na época, e o corpo de Eliza nunca foi encontrado. Em 2013, a juíza Marixa Fabiane Lopes decretou que fosse emitida a certidão de óbito da modelo. Junto dos “funcionários” que o ajudaram a cometer o crime, Bruno acabou condenado a 22 anos de prisão pelo assassinato, pois a investigação concluiu que ela teria sido atraída para o sítio do jogador em Esmeraldas, no estado de Minas Gerais, onde foi assassinada. Eliza nunca mais foi encontrada e o bebê Bruninho, que estava com ela, foi entregue a outras pessoas.
Todo o caso repercutiu muito enquanto os fatos transcorriam, sendo muito explorado pelos programas sensacionalistas – o apresentador Ratinho chegou a prometer uma recompensa por quem trouxesse Eliza viva. Mas o mais impressionante de toda a história, como A Vítima Invisível bem esclarece, é que Eliza, como diz uma das entrevistas, fez “tudo certo”. Ele anunciou a quatro ventos que estavam correndo risco de vida e, mesmo assim, não foi protegida.
Caso Eliza Samudio: por que importa?
Catorze anos depois do assassinato de Eliza Samudio, a história contada em A Vítima Invisível choca, infelizmente, mais do que provavelmente chocou na época da ocorrência da morte. O background de Eliza (o que incluía uma infância paupérrima no Paraná, vinda de uma família desestruturada, e a ambição de se tornar algo maior do que o seu contexto) fez com que ela fosse enquadrada rapidamente por um viés negativo, como a “maria chuteira” que queria levar vantagem em cima de um jogador famoso.
No Rio de Janeiro, ela se tornou amante de Bruno, enquanto ele mesmo tinha noiva e várias outras namoradas (obviamente, o julgamento da opinião pública pendeu mais para as mulheres do que para ele).
O caso de Eliza Samudio tem forte interesse público, diferente de tantas outras narrativas true crime, pois fala de algo que diz respeito a muita gente: a misoginia vigente que, ano após ano, continua existindo como uma praga invisível.
Impetuosa, ao ficar grávida, Eliza resolveu levar sua história para a imprensa, dando várias entrevistas para jornais e programas de TV, além de ter produzido uma forte declaração na frente de uma delegacia sobre as ameaças que estava sofrendo. E, para completar a consolidação do estigma em torno dela, Eliza Samudio também teve uma rápida participação em filmes pornográficos enquanto morou em São Paulo e precisava de dinheiro. Tudo isso, como vemos, solidificou a ideia de que sua vida valia pouco.
O depoimento de uma advogada, que representa Sonia Fatima Moura, mãe de Eliza, é contundente: ela fez tudo certo, e trouxe a público todas as ameaças que vinha sofrendo, mas mesmo assim o Estado não a protegeu. Sonia então arremata: Eliza não tinha medo de nada, e o medo é um fator essencial para a vida – especialmente das mulheres.
Todo o caso de Eliza Samudio, portanto, tem forte interesse público, diferente de tantas outras narrativas true crime, pois fala de algo que diz respeito a muita gente: a misoginia vigente que, ano após ano, continua existindo como uma praga invisível. Não por acaso, vale dizer, ao ser solto em liberdade condicional em janeiro de 2023, Bruno conseguiu retomar minimamente sua carreira como atleta, e até se casou de novo. Já Eliza, eternamente perpetuada pelo crime terrível do qual foi vítima, sobrevive pelo legado de sua história.
Ao trazer novamente o caso de forma respeitosa e jornalística, Netflix faz um baita acerto em A Vítima Invisível: O Caso Eliza Samudio. Vale muito conferir.
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