“A próxima proeza que eu busco é ser feliz”. É de desta forma, tão singela quanto sábia, que José Hamilton Ribeiro encerra a grande reportagem feita em sua homenagem no programa Globo Rural, sua casa durante 42 anos, até que se aposentasse, em 2022. Repórter mais premiado do Brasil, Zé Hamilton se tornou uma lenda viva do jornalismo brasileiro. Ele é, sem exagero, uma espécie de totem que simboliza toda a riqueza que o jornalismo televisivo é capaz de oferecer, quando bem feito.
Com 68 de carreira no jornalismo (ele começou a trabalhar em 1954), Zé Hamilton tem uma trajetória marcada por uma experiência bastante profunda nas reportagens que executou. Conforme esclareceu em muitas entrevistas, seu foco sempre foi o de mergulhar (às vezes literalmente) nos temas que abordava. Certamente, o episódio mais famoso nesta sua osmose com o jornalismo é a cobertura feita para a revista Realidade da Guerra do Vietnã, em 1968. Ele foi enviado para abordar o conflito sob a ótica dos Estados Unidos.
Mas, no meio do caminho, uma tragédia acontece: José Hamilton pisa em uma mina terrestre e perde a perna esquerda. A partir daí, a reportagem se redireciona a passa a englobar sua sobrevivência e sua adaptação em hospitais vietnamitas. Ao reconstituir a experiência no livro O Gosto da Guerra, ele vai aos detalhes das sensações vivenciadas no momento da explosão:
“Sentia na boca um gosto ruim, como se tivesse engolido um punhado de terra, pólvora e sangue – hoje eu sei, era o gosto da guerra. Cuspia, cuspia, mas aquela gosma amarga permanecia na boca. Então senti um repuxão violento na perna esquerda e só aí tive consciência de que a coisa era comigo. A perna esquerda da calça tinha desaparecido e eu estava, naquele lado, só de cueca (…). Olhei-me de novo: abaixo do joelho, na perna esquerda, só havia tiras de pele, banhadas de sangue, que repuxavam e se arregaçavam, fora do meu controle”.
Penso que esta história pessoal – a mais famosa de sua carreira – é um símbolo importante da entrega e do profissionalismo deste jornalista. Zé Hamilton, em 68 anos, quis adentrar os sertões do Brasil para trazer aos brasileiros, com uma postura de respeito e generosidade, personagens e histórias que talvez eles só conheçam das lembranças dos mais velhos. A vida do campo e dos animais nas matas, as histórias das árvores mais majestosas dos nossos biomas, as manifestações culturais existentes nos recônditos – está tudo lá nas reportagens.
O jornalismo televisivo na ótica do repórter do século
Em 2022, muitos se espantaram pela “demissão” de José Hamilton Ribeiro da Globo – repercussão dada especialmente por conta do contexto atual de desligamentos da emissora para a mudança de contratos pontuais por obras. Mas o fato é que Zé Hamilton não foi exatamente desligado: ele se aposentou, aos 86 anos. Foram 66 anos de carteira assinada, como ele esclarece.
A reportagem do Globo Rural é uma grande homenagem dividida em 4 partes. Sua estrutura é sofisticada, e faz jus ao legado construído por José Hamilton. Conduzida pelo apresentador Nelson Araújo, ela propõe um passeio na vida do repórter que vai sendo costurada por reportagens antigas. Araújo vai até a fazenda em que Zé Hamilton mora, em Uberaba, Minas Gerais, e parece ter um objetivo velado: mostrar que toda a carreira que ele desenvolveu tem continuidade com quem ele é (e sempre foi).
É um compilado riquíssimo, digno de ser apresentado em disciplinas de telejornalismo. Vemos, por exemplo, os esforços do grande repórter em fazer um resgate sobre a importância da preservação do meio ambiente. Inclusive, causa espanto que a configuração do Globo Rural, focada sobretudo nos pequenos agricultores, ainda permaneça preservada quando alguns dos principais anunciantes da emissora sejam as grandes empresas do agronegócio. Em uma parte da entrevista, Zé Hamilton chega a dizer: “o homem, quando ele quer dinheiro, não tem limite. É a desgraça do capitalismo”.
Mas destaco aqui como a conversa entre Zé Hamilton e Nelson Araújo traz várias pistas sobre a natureza do jornalismo televisivo e o quanto ele pode ser rico se for bem explorado. Com vários livros publicados, além de sua passagem na revista Realidade, José Hamilton é conhecido também pelo texto, que explora recursos do que se chama de jornalismo literário (que compreende a construção de reportagens com recursos estilísticos típicos da literatura). Por isso, os insights que ele solta no Globo Rural sobre o seu trabalho são valiosos.
Em certo momento, ele discute o casamento entre texto e imagem, que é a grande chave do discurso do telejornalismo. Como todo casamento, ele precisa sempre de ajustes, de equilíbrio, de concessões de ambos os lados. A imagem, diz Zé Hamilton, pode também ser a prisão do texto. E ele esclarece que o grande enigma é como fazer um texto rico (entenda-se: que tenha poesia mas seja informativo; que seja sofisticado mas seja compreensível pelas pessoas mais simples) dentro dessa limitação do meio.
O outro ponto destacado por Zé Hamilton é o fato de que jornalismo na televisão, tal como na fazenda, é trabalho coletivo. Ao ser perguntado sobre quem são os gigantes em cujos ombros ele se apoia, prontamente menciona os cinegrafistas, profissionais quase sempre invisíveis que são os responsáveis pela linguagem das imagens. Neste sentido, o repórter homenageia seus colegas exibindo um deles enquanto faz uma filmagem montado (ao contrário!) no lombo de um cavalo.
Em 2008, tive a honra de organizar um evento com José Hamilton Ribeiro e pude passar um dia inteiro com ele. Foi um momento único que guardo na minha memória pessoal e profissional. Dentre as tantas lembranças, está a dele contando da única reportagem que quis fazer e nunca conseguiu: o de mudar o tom de sua pele para passar um tempo sendo uma pessoa negra.
Ainda que hoje a ideia possa parecer questionável ou desrespeitosa, penso que se explicita aqui a característica de um grande repórter: o de querer apresentar a realidade dos outros, nas suas dores e nas suas alegrias. A julgar pelo retrato humilde e competente que Zé Hamilton fez do homem do campo em suas seis décadas de carreira, dá para assegurar que ele conseguiu. Como ele mesmo pontua na reportagem do Globo Rural: “parece que eu fiz o serviço certo”.
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