Há 36 anos, o domingo de muitos brasileiros começa de forma bastante parecida: com a clássica canção “Luzeiro”, de Almir Sater, atravessando as imagens de um país algo estranho aos que já que nasceram dentro das cidades extremamente urbanizadas. São cenas de campos reluzentes, do gado que corre, dos grãos que germinam e de um homem que consideramos (de uma forma ingênua, que fala mais sobre nós do que sobre ele) mais simples.
Ao longo destas quase quatro décadas, o programa Globo Rural se modernizou, mas enfrentou com sagacidade o desafio de mudar e permanecer fiel àquilo que se propõe desde o princípio: a de se colocar como um canal de comunicação eficiente à população rural. Obviamente, não é apenas a esta camada que ele atinge, mas é a ela que se destina – e é isso que define sobre o que e como o programa irá falar.
Em outras palavras, o Globo Rural assume como objetivo central trazer informações úteis ao homem do campo, a partir de suas demandas diárias. E como isto é feito? Alguns elementos são reconhecíveis a uma observação mais atenta: os apresentadores, em alguma medida, empregam uma linguagem mais didática, num ritmo um pouco mais lento do hard news diário dos telejornais (e que se pontue: isso não implica, pelo que se vê, em qualquer menosprezo ao espectador, mas apenas a ênfase em uma das características naturais à televisão, que é a linguagem simples).
As reportagens são longas, elaboradas; os canais de comunicação permanecem dos mais tradicionais (o programa ainda recebe cartas, e algumas pautas são elaboradas a partir destas mensagens). A proximidade é um elemento importante: quando alguma carta é lida no programa, o repórter se direciona diretamente ao espectador, o “seu” fulano, citando o seu nome várias vezes durante a reportagem. Há ainda um momento de divulgação de cartazes com eventos que são mais relevantes na rotina das cidades pequenas que dos grandes centros.
Ou seja, todas estas estratégias celebram, em alguma medida, a simplicidade do ambiente rural, do homem “descontaminado” pelas mídias (se é que ele ainda existe). Há, claro, um tanto de idealização do campo, que traz à ideia a nós, os “urbanos”, de que esta é uma vida mais feliz e mais sábia. Muitas reportagens do Globo Rural reiteram os conhecimentos algo superados pela ciência moderna, e trazem dicas esquecidas por parte da população, já acostumada a imaginar que todos os problemas são tratáveis por meio da medicalização. São reportagens, por exemplo, em que agricultores apontam soluções simples (formas alternativas de cultivo, por exemplo) a certos problemas cotidianos.
Se de alguma maneira Globo Rural se modernizou, não permaneceu parado no tempo, por outro lado, não se pode dizer que o programa se atualizou frente a certas demandas fortes da agenda coletiva. Explico: a discussão sobre a produção agropecuária continua, ao longo de todos esses anos, direcionada essencialmente ao pequeno produtor, e há pouco espaço para o debate mais complexo de impacto ambiental, desmatamento, os problemas causados pelo gado, etc. Seria injusto, talvez, apontar isso como um defeito do programa, uma vez que o seu público-alvo está sendo contemplado; ainda assim, um argumento possível é que essa reflexão ambiental precisa ser feita por todos, mesmo para aqueles que dependem da manutenção destas práticas rurais já bastante antigas.
Diz respeito ao jornalismo tarefas menos urgentes, mas igualmente relevantes, como a de assentar a nossa memória coletiva, prestando homenagem aos que nos trouxeram até aqui.
Mas gostaria, novamente, de atentar aqui ao tipo de jornalismo que também está, bem no fundo, sendo feito pelo Globo Rural – que, de certa forma, está na contramão do ritmo do jornalismo de hoje, marcado pela urgência, pelo furo, pela ansiedade. Acredito que em alguma medida que são as características deste jornalismo que fazem o programa ser tão atraente mesmo àqueles que em suas rotinas mantêm nenhuma relação direta com o campo.
Para entendermos qual a configuração do jornalismo do Globo Rural, precisamos fazer uma breve reflexão sobre as funções deste ofício. Ao jornalismo, cabe a responsabilidade de informar, ou seja, trazer informações relevantes a uma grande camada da população, tirando-a da obscuridade e ofertando a luz do conhecimento imediato. Mas não apenas isso: ao jornalismo também diz respeito outras tarefas menos urgentes, mas igualmente relevantes, como a de assentar a nossa memória coletiva, prestando homenagem aos que nos trouxeram até aqui. Em outras palavras, o jornalismo também serve para nos fazer sentir em casa.
Para ilustrar isto, menciono as reportagens do principal repórter do Globo Rural, José Hamilton Ribeiro, um dos mais importantes e premiados jornalistas do Brasil. Há mais de trinta anos, ele é o rosto mais conhecido do Globo Rural. Zé Hamilton – como costuma ser carinhosamente chamado – empresta seu talento de grande contador de histórias para levar ao público não só informações úteis, mas a própria alma do homem rural.
Vejamos, por exemplo, uma reportagem (que tem nada menos que 20 minutos), veiculada recentemente, que é uma grande homenagem às irmãs Galvão, as cantoras que celebram 70 anos de carreira na música caipira. A matéria faz um verdadeiro resgate na memória da música popular – área na qual Zé Hamilton é expert – e celebra, por consequência, todos os artistas que assentaram as raízes para que a música sertaneja chegasse até aqui.
Mas como isso se dá é a real sacada da narrativa. José Hamilton (incansável nos seus 81 anos, sendo um dos mais longevos repórteres brasileiros) visita inúmeras fontes, dentre especialistas em música caipira e fãs e músicos que testemunharam a carreira das irmãs. Quase todos os entrevistados são idosos, fortalecendo a sensação de registro histórico daquilo que vemos. O texto do repórter, como sempre, é construído com esmero.
A singeleza da abordagem do repórter a tantas fontes é ainda um momento central: Zé Hamilton bate palmas na porta dos entrevistados para chamá-los, e junto com a sua equipe, aparece almoçando e tomando café na casa simples das estrelas, as Galvão. A genuína curiosidade do experiente repórter é, por fim, uma lição para todos os jovens jornalistas, hoje tão atrelados ao cumprimento de metas pela lei do menor esforço (por exemplo, achando que consultar a internet é suficiente e que o encontro presencial com as fontes não é tão importante).
Por fim, todas as reportagens do programa deixam subentendida uma pequena lição: jornalismo não é apenas hard news, um delivery de informações, a solução imediata de problemas. Serve também para nos lembrar de onde viemos – o que, sem dúvida, é uma função nobre, necessária e por vezes esquecida pelos nossos veículos de comunicação. E está aí a trilha do Globo Rural, com esse “gosto” de casa da vó, a nos lembrar disso a cada domingo.