É chover no molhado dizer que A Fazenda 12, ao lado de BBB 20, tem sido uma das grandes atrações televisivas deste ano – que foi prejudicado, é bom lembrar, pelas contenções causadas pela pandemia. Muitos comentaristas destacam que o reality show da Record, da mesma forma que seu “primo rico” da Rede Globo, é uma das poucas válvulas de escape que nós, brasileiros, podemos ter em um período tão duro, com tantas perdas recorrentes. Por isso, fugir diariamente para o universo superficial da “Fazendola”, tal como chama o apresentador Marcos Mion, não deixa de ser uma forma de conseguir extravasar nossa irritação.
Por isso, dá até para dizer que os participantes de um reality show de convivência têm algo (com o perdão da infâmia) de heroico: eles oferecem suas vidas (seus corpos, suas mentes, suas privacidades, suas reputações) em prol de um entretenimento relativamente barato. A nossa torcida do lado de cá, como já dito, é mero escapismo. Não estamos lá muito interessados no impacto de que nossas falas em torno desses sujeitos irão causar em suas vidas pós-A Fazenda. Afinal, acreditamos, eles estão ali justamente para nos divertir, e receberam muito bem para isso.
Mas como já dito nesta coluna em outros textos, reality shows de convivência são sempre sobre os personagens que agrupam. A montagem do elenco é uma incógnita: pode dar muito certo quanto muito errado. As apostas são altas, e por isso é preciso tentar assegurar que o staff será bom. Em 2020, A Fazenda mirou alto. Confirmou nomes relativamente desconhecidos, mas, dentre eles, conseguiu emplacar duas “estrelas”: a funkeira Jojo Todynho (que há anos era especulada como possível participante do programa) e o funkeiro Biel, um jovem revestido daquele traje incômodo do cancelamento público, por uma série de fatos infelizes e/ou criminosos (como acusações de violência e assédio contra mulheres) que cometeu nos últimos anos.
E o que querem, afinal, estes dois indivíduos quando aceitam participar de um programa como esse? No caso de Biel, é fácil dizer, pois isso é reconhecido por ele mesmo e seus colegas de confinamento. Ele quer uma nova chance, uma redenção dos seus erros, a possibilidade de se ressignificar perante um país que já o descartou como inadequado. Biel, afinal, representa muito do que tantos de nós consideram como a escória: é um homem jovem, mas que se passa por um menino, pois se recusa a crescer. É um sujeito bem nascido, que enriqueceu com uma “arte” de qualidade duvidosa e conheceu os louros da fama sem estar preparado para isso. Bebeu do néctar viciante da fama, mas se deu mal. Tem algo de Neymar em Biel, mas sem o carisma (se é que Neymar ainda tem algum). Ele deseja, portanto, ser querido – embora provavelmente deseje mais por motivos profissionais que pessoais.
Jojo e Biel, os dois lados opostos de uma mesma moeda. O funk raiz versus o funk nutella. Personificam, com suas próprias existências, uma lição sobre luta de classes e sobre meritocracia
Já Jojo é uma personagem bem mais difícil de ser decifrada. Com apenas 23 anos, mulher gorda e negra, Jojo tem origem na pobreza. Já trabalhou no Mc Donalds, vendeu picolé, foi camelô, cuidadora de idosos, fez faxina. Sofreu (e sofre) racismo e gordofobia desde que se entende por gente. Sofreu um aborto e enfrentou a depressão. Despontou para a fama em 2017, por causa da música “Que tiro foi esse?”. A partir disso, tornou-se uma espécie de objeto de culto das celebridades trash – o público se divertia com a música de Jojo na mesma medida que ria da sua figura considerada inadequada aos padrões midiáticos (o que faz pensar um pouco no tipo de culto em torno de Gretchen).
Jojo é, em certa medida, uma figura enigmática, uma vez que faz uso dessa fama que tem algo de debochado (novamente, como Gretchen) ao mesmo tempo que não se rende a ela. Em outras palavras: a figura de Jojo é, em vários aspectos, uma figura de resistência. Riem dela, mas ela não deixa que passem da linha. Ela tira proveito, de maneira bastante inteligente, desse culto irônico que se estende em torno de si.
Pois bem. Em 2020, por fim, A Fazenda conseguiu confirmar Jojo em seu elenco – cumprindo uma expectativa de anos. O público do reality show mal podia esperar para ver, afinal, se a espera valeria a pena, e se Jojo seria, na “vida real”, essa mulher indomável, conforme sugere sua figura combativa. Vale lembrar que Jojo é quase oposta a todos que estão naquele grupo homogêneo de participantes, todos editados, plastificados, com dentes reluzentes. Ela é real.
Jojo cumpriu até aqui as nossas expectativas. Foi a si mesma: foi amiga e centralizadora, e pouco simpática para os que tentaram invadir seu espaço. Revelou pouca paciência com os problemas do convívio com pessoas tão diferentes – já ficou icônica a cena em que ela esmurra uma garrafa de alumínio para extravasar a raiva. Quase todas as vezes em Jojo apareceu agora, ela brilhou – justamente por parecer, diferente da maioria, um personagem não ensaiado.

E aí chegamos neste embate entre os dois protagonistas: Jojo e Biel, os dois lados opostos de uma mesma moeda. O funk raiz versus o funk nutella. Personificam, com suas próprias existências, uma lição sobre luta de classes e sobre meritocracia: ela subiu na vida escalando uma escada que a empurrava para baixo; ele subiu de elevador.
Biel, esperto, já entendeu isso e reivindica o controle dessa narrativa. Após ter tentado uma aproximação com ela, e ter sua proposta de aliança sumariamente rejeitada (Biel tentou se equivaler a Jojo, pelas “origens” no funk, e a acusou de racismo reverso), Biel resolveu fazer uso da “novela”, como ele mesmo chama, e a tornou sua arquiinimiga. O problema é que o moço acredita, ingenuamente, que tem chances de ser o mocinho desse melodrama.
A essa altura do campeonato, Jojo já parece cansada. Ela parece ter desistido de brincar de A Fazenda e sugere ter cansado do embate com seu nêmesis. Já notou que entrar em um reality show é sempre uma roubada, e que debater com sujeitos como Biel é sempre uma missão inglória. O que é uma pena, pois cada fala de Jojo é uma verdadeira aula sobre a vida de verdade, não a vida fake de celebridades de reality shows.
Jojo e Biel juntos se complementam justamente por serem faces opostas da mesma coisa. São uma ilustração muito bem-feita do que significa nascer e viver no Brasil. Para nosso deleite, mas também para nosso aprendizado, é de se torcer que esse embate continue rolando ainda por um bom tempo.