“Eu sou a pessoa agredida no vídeo. Tenho vários machucados, mas estou bem. O fato: tenho o hábito de buscar meu filho na faculdade, sempre em torno de 22 horas. Recebi uma mensagem dele dizendo que não estava na faculdade e sim na praça central de Caxias do Sul, onde estava acontecendo uma manifestação pelo ‘Fora, Temer’. Me dirigi para lá e já não havia muitas pessoas. Não o vi. Recebi um pedido de ajuda dele dizendo que estavam precisando de um advogado, pois haviam jovens sendo presos a uma quadra da praça, quando se dispersavam. Cheguei e vi uma moça e um jovem, certamente menores de idade, de mão na parede e os policiais se preparando para conduzi-los à delegacia. Retirei minha carteira e apresentei aos policiais para saber da razão da condução dos jovens e qual o nome deles. De imediato fui repelido com empurrões e não tive a condição de advogado reconhecida, talvez por eu ser negro. As agressões foram muitas e meu filho veio em meu socorro. Ele está preso. Dizem que ele chutou um policial. Foi conduzido à penitenciária de Caxias do Sul. Meu filho é estudante de Direito. Por longo tempo foi atleta da Confederação Brasileira de Canoagem. O presido não é o lugar dele. Vou trabalhar para tirá-lo de lá.”
Esse é um depoimento real sobre uma manifestação contra o governo de Michel Temer, que ocorreu no último dia 1.º de setembro em Caxias do Sul (RS). O vídeo mostra a truculência de policiais espancando um advogado, negro, e que tentava resolver a prisão de dois jovens.
“Eu só fui entender que eu era preta e pobre na cadeia.”
Esse já é um dos ótimos diálogos de Justiça, nova minissérie de Rede Globo, que estreou há duas semanas. Rose (Jéssica Ellen) é uma moça negra, filha de uma empregada doméstica que foi criada junto com Débora (Luisa Arraes), filha da patroa de sua mãe. Ambas tiveram educação semelhante e agem como se fossem irmãs, uma apoiando a outra. A vida de Rose está prestes a mudar quando ela passa no vestibular para Jornalismo. Ao comemorar seu aniversário de 18 anos num luau e comprar drogas para todos os amigos, Rose é detida por Douglas (Enrique Diaz) como traficante.
A cena é explícita ao separar brancos de negros e, mesmo nada sútil, coloca o dedo na cara do público: vivemos num país racista, todo os dias. Débora, que até então defendia a amiga, fez silêncio e fugiu. O verdadeiro traficante, Celso (Vladimir Brichta), namorado de Rose, também fugiu. A covardia das pessoas custou à garota sete anos de prisão e o fim do sonho de se tornar jornalista. Ninguém dá emprego para ex-presidiário.

São com casos dolorosamente reais que Justiça estabelece sua conexão com o público. Quatro prisões em uma única noite de 2009, em uma Recife muito mais cinza do que ensolarada. Uma coincidência que une quatro pessoas de origens diferentes, cujos efeitos serão sentidos por muito tempo – muito mais do que a pena de sete anos de reclusão a que foram condenados. A razão pela qual cada um foi julgado culpado é questionável, não pelos crimes em si, mas pelos caminhos que percorreram até a prisão.
Criada por Manuella Dias (de Ligações Perigosas) e dirigida pelo excelente José Luiz Villamarin (Amores Roubados, O Rebu), Justiça discute bastante a linha tênue entre o que é justo e o que não é, mas encanta mesmo por mostrar uma dura realidade facilmente identificável.
Em seus primeiros oito episódios, a minissérie pesou a mão no drama, em cenas chocantes, mas que jamais soam piegas. A proposta é que o público emule um pouco do drama vivido pelos personagens, que são levados ao limite humano. Mesmo sabendo que o roteiro está facilmente nos conduzindo para um vale de lágrimas, fica muito difícil não entender os motivos pela qual a feição dos personagens trazem marcas tão tristes. Justiça traz um retrato triste de um Brasil que não é discutido na grande mídia, apenas pincelado.
Expostos às condições certas, talvez nós agíssemos da mesma forma que aqueles personagens.
A minissérie é exibida de segunda a sexta-feira, exceto nas quartas, e o público acompanha a história de cada um dos personagens em dias específicos (mais ou menos como em In Treatment, da HBO). Quem é o protagonista em um episódio, pode ser o coadjuvante no outro dia. Esse formato é mais conhecido para o público de séries norte-americanas, mas é um desafio para a TV aberta brasileira. A Rede Globo, então, dá mais um voto de confiança para inovar nas narrativas. Se Velho Chico versa com a poesia, mas sofre com a audiência, Justiça vem marcando pontos impressionantes no ibope, provando que quando a história é boa, o público permite ser provocado.

E provocação é um dos grandes acertos do roteiro. Se você soubesse que o assassino de sua filha vai sair da prisão após sete anos, você o mataria? Você julgaria a mãe por matar o homem? Ou o homem já cumpriu sua obrigação perante à justiça? Uma mãe que teve sua vida destruída por um policial corrupto deve se vingar? Uma mulher pode pedir ao marido para que ele a mate, já que um acidente a deixou imóvel para o resto da vida? São questionamentos que, geralmente, a pauta conservadora da televisão aberta não está acostumada a tratar com destaque, e aqui não me restrinjo ao público brasileiro, mas a todos os canais.
Dessa forma, Justiça não facilita as coisas para sua audiência, porque não delimita seus personagens. Não existe bem ou mal. O policial corrupto, racista e machista de repente tem um respiro de culpa e decide ajudar a mulher que ele destruiu. O assassino de uma jovem mostra remorso e coloca em dúvida toda a certeza de uma mãe disposta a se vingar.
E as atuações de Justiça impressionam. Débora Bloch, Cássio Gabus Mendes, Jesuíta Barbosa, Marina Ruy Barbosa, Leandra Leal, Vladimir Brichta, Cauã Reymond, Antônio Calloni, Marjorie Estiano, Drica Moraes, Tobias Carrieres, todos estão inspirados. Mas quem rouba a cena é Adriana Esteves e sua Fátima, única a realmente não cometer um crime. Com seu olhar cansado e determinado, Adriana constrói uma personagem incrivelmente brasileira e suas cenas talvez sejam as mais reais. Sua casa é igual a tantas milhares de casas de famílias que ainda vivem num ambiente muito pobre, mas cheio de vida. E a cena em que a personagem visita seu antigo lar depois de sete anos presa já entra para um dos momentos mais bonitos e melancólicos do ano na TV, assim como quando tenta salvar o bolo de aniversário da sua família após o cachorro do vizinho ter invadido o terreno, uma grande metáfora do que aconteceria em sua vida dali para frente.
Mas o que salta aos olhos é mesmo a direção. A câmera de José Luiz Villamarin não tem pressa, passeia por cômodos, extrai dos atores tudo o que a cena exige, utiliza planos-sequência, deixa a câmera estática e contemplativa, trabalha com closes no rosto dos atores que fazem o público se sentir muito próximo daquelas pessoas. Recife também ganha destaque ao ser mostrada, mais uma vez, como uma das cidades em que as diferenças de classes gritam e convivem.
É claro que quando se brinca com diversas histórias e personagens o roteiro precisa de muito cuidado. Assim, Justiça mostra fragilidade em alguns arcos narrativos e até mesmo na proposta central. Não fica claro porque todos foram soltos após sete anos, mesmo que os crimes sejam diferentes, nem como todos se encontram na delegacia na mesma noite, quando há algumas incongruências no tempo de cada acontecimento (Fátima é presa somente no dia seguinte, mas aparece na delegacia na noite de todos os outros crimes). Ainda assim, essas falhas não chegam a comprometer a experiência do público, que se vê ansioso para saber o desfecho de personagens tão humanos.
Restam apenas três semanas para Justiça terminar e, a não ser que o roteiro derrape feio daqui pra frente (o que acho difícil), a minissérie já carrega o título de melhor produção brasileira de 2016 até o momento. Com histórias cotidianas e tragédias que infelizmente passam longe do irreal, Justiça coloca o público não apenas como meros espectadores da desgraça alheia, mas obriga cada a um a pensar no que é a tão chamada justiça e a rapidez com a qual nós julgamos. Afinal, expostos às condições certas, talvez nós agíssemos da mesma forma que aqueles personagens.