No mundo paralelo do Twitter das polêmicas que duram apenas um dia, não se falou de outra coisa além do episódio de Luísa Sonza no Mais Você. A cantora esteve no programa matinal de Ana Maria Braga e fez uma revelação ao vivo de que seu namoro com Chico Moedas havia chegado ao fim depois de uma traição.
A repercussão nas redes foi monstruosa. Mas penso que vale a pena nos atentarmos às estratégias usadas por Luísa (e pelo Mais Você) exatamente no local onde esta breaking news aconteceu: a televisão. Ou seja, faço aqui um convite para que dediquemos um olhar mais atento ao momento em que, na frente de Ana Maria, Luísa Sonza é convidada para ler algo em seu celular que, segundo diz a apresentadora, “é um texto maravilhoso e é um recado para todas as pessoas que já traíram alguém”.
A cena é importante: é a famosíssima mesa de café da manhã de uma das apresentadoras mais queridas do Brasil. É ali que, supostamente, famosos abaixam sua guarda e entregam aos espectadores a oportunidade de ver um pouquinho do que são e do que sentem. Ana Maria Braga reforça essa chave do “privado” quando diz que Luísa não queria ler o texto que logo mais vai começar a declamar. Já com olhos vermelhos, marejados, a cantora ainda solta, tímida: “será que leio mesmo?”. Depois reforça: “não estava programado eu ler esse texto, mas ela pediu e eu obviamente não poderia negar”.
Estrelas pop como Luísa Sonza são bem mais que cantoras, mas produtos muito bem acabados que têm sua existência e sua fama em estratégias transmidiáticas milimetricamente planejadas.
Começa a leitura e o que ouvimos é um “textão” bem semelhante aos tantos que circulam hoje em perfis de Instagram, prometendo um resumo poético de todas as angústias que nos afligem hoje – em especial, às mulheres. Bem treinada (é, afinal, uma performer), Luísa Sonza lê, emocionada, um texto em que fala sobre a traição, ao mesmo tempo em que busca ligar-se à ancestralidade feminina. Ela esclarece que não está falando só sobre si, mas sobre todas as mulheres, como sua mãe, avós e tias, que um dia foram traídas por seus maridos e aguentaram caladas.
Enquanto lê, Luísa encara de tempo em tempo a câmera, com seus grandes olhos verdes bem avermelhados. Seu rosto é enfocado por vários ângulos, sempre em close, em uma clara busca incessante pela lágrima prestes a cair (infelizmente – para a Globo – ela não caiu). Sua imagem é intercalada com a de Ana Maria Braga, que limpa os olhos, também marejados.
Já chegando ao fim do texto, há um encerramento triunfal. “Meu amor, infelizmente hoje você mexeu com a mulher errada”, fala uma Luísa vingativa, que passa brevemente do semblante emocionado para o jocoso, com um sorrisinho de canto de boca. Encerra-se, com o apoio de Ana Maria Braga, a pantomima orquestrada sobre o começo e o término do romance relâmpago de Luísa Sonza e Chico Moedas. Luísa, por ter o controle final da narrativa, sai por cima.
Luísa Sonza como um produto transmidiático
Poderia ter sido perfeito. Só que não foi. E a razão parece simples e mesmo irônica: estrelas pop como Luísa Sonza são bem mais que cantoras. Na verdade, são produtos muito bem acabados que têm sua existência e sua fama em estratégias transmidiáticas milimetricamente planejadas. A qualidade (ou não) da sua voz não importa muito nesse ofício – até porque ela pode ser modificada por dispositivos tecnológicos. Luísa, emprestando o termo muito usado no marketing, é uma experiência.
E claro, esse tipo de produto é possível porque hoje vivemos em momentos complexos, em que nossas vivências com a mídia hoje é muito mais intensa e participativa. Mas esse “empoderamento” (palavra já gasta) explorado pelas empresas de marketing (como as que sustentam as narrativas em torno de Luísa Sonza) não está apenas disponível para elas, mas para todos que queiram mergulhar nesse universo da fama e aprender sobre as táticas que são usadas para tornar alguém bem-sucedido.
Por consequência, a entrevista (concedida em um veículo tradicional eletrônico, a TV) foi capturada imediatamente em incontáveis memes e piadas que, em boa parte dos casos, subverteram o sentido esperado à mensagem no Mais Você, que seria algo do tipo “veja que mulher incrível que tomou um chifre, mas não se rebaixou a isso, e saiu mais forte dessa”.
Mas o que me chama mais a atenção é que muitos usuários das redes sociais parecem ter ligado os pontos mais delicados, que revelariam a real intenção por trás desse testemunho inesperado num programa de grande audiência: na mesma semana, ocorreu um acordo com a mulher que processa Luísa Sonza por racismo há quatro anos – o que, inicialmente, Luísa negou ter acontecido, mas acabou se retratando.
Como alguns sacaram, haveria, nessa entrevista “imprevista”, uma tentativa de criar uma cortina de fumaça para que a outra notícia não se propagasse. E faz sentido: nessa época em que o cancelamento está sempre à espreita, vale mais a pena ser corna que racista. Houve até os gaiatos que chegaram a dizer que Chico Moedas, o namorado traidor, teria sido “antirracista” ao aprontar com Luísa.
Se há algo que pode restar do escândalo do dia, é isso: talvez já estejamos na era em que a consciência sobre o funcionamento da mídia tenha chegado pelo menos a uma parte da população. É de se esperar agora que esse letramento se preste também a outras questões para além do noticiário de fofoca.
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