Na semana passada, comentei aqui sobre a abordagem feita pelas emissoras televisivas sobre o caso da execução da vereadora do PSOL Marielle Franco, tornando o acontecimento um dos grandes fenômenos político-digitais dos últimos tempos – os comentários sobre o fato no Twitter, aliás, chegaram a superar em quantidade os posts sobre o impeachment de Dilma Rousseff em 2016. Como resultado, a televisão teve que “correr atrás” de uma manifestação que tomou fôlego nas redes digitais e foi adentrar os grandes veículos, em uma lógica cuja inversão (as redes sociais pautando a TV e não o contrário) tem se tornado cada vez mais recorrente.
Passada uma semana de que tudo aconteceu, o caso ainda não foi silenciado e continua se desdobrando na televisão – obviamente, atingindo novas configurações e suscitando novas análises. A morte de Marielle Franco segue dando pano para manga e levantando outras questões interessantes acerca dos desafios enfrentados pelo jornalismo em tempos de convergência de mídias. Sua repercussão tem sido tão forte que o fato inclusive adentrou a programação de entretenimento: o Vídeo Show, um programa totalmente dedicado ao culto da própria televisão e das estrelas que ela mesma constrói, fez uma homenagem a Marielle. Além disso, o humorístico Tá no Ar, que também tematiza a televisão, encerrou sua edição com uma tela que reverenciava a hashtag “Marielle, Presente”. Já o Encontro com Fátima Bernardes enfrentou uma espécie de saia justa ao tratar do assunto, logo após a sua morte.
É interessante notar, portanto, que a pauta do assassinato de Marielle Franco se impôs em praticamente toda a programação televisiva, fazendo com um tema de interesse político se misturasse com atrações de outra ordem. A televisão, nesse caso, parece enfrentar uma espécie de dilema, pois se vê diante de uma rota sem saída: se não trata do assunto, é acusada de alienada, de fechar os olhos à realidade; se toma posse do tema em programas que nada teriam a acrescentar ao caso, causa estranhamento e gera uma certa impressão de oportunismo.
O mais impressionante, ao que me parece, foi que o caso forçou uma “pauta” que se repetiu em todos os telejornais da Globo: uma reportagem que funcionasse como uma explicação bastante didática e acessível sobre o que é fake news, as notícias falsas que (ninguém sabe explicar direito como) circulam e geram repercussão a partir das redes sociais, tomando mentiras como verdades. Em suma, é sintomático notar que veículos de peso como o Jornal Nacional tiveram que dedicar um momento de sua programação para explicar a lógica da desinformação promovida, em parte, pela propagação de notícias mentirosas via internet.
Há uma mudança bastante profunda no universo das mídias quando o principal telejornal do país acredita que deve explicar à população sobre como as informações falsas circulam entre os usuários da internet.
Dizendo em outras palavras: há uma mudança bastante profunda no universo das mídias quando o principal telejornal do país acredita que deve explicar à audiência televisiva sobre como as informações falsas circulam entre os usuários da internet. A reportagem do Jornal Nacional, inclusive, chega a reproduzir prints das mensagens postadas pela desembargadora Marília Castro Neves, que se tornou uma espécie de inimiga nacional por causa das mensagens irresponsáveis e mentirosas que divulgou em sua página (pessoal) do Facebook (o caso ganha repercussão, é claro, pois se trata de alguém que desempenha uma função pública, ou seja, paga por todos os brasileiros, e não um mero “civil” qualquer). Em suma, deu-se palco (e tela) para expor um blá-blá-blá da infame desembargadora – um “vômito” online, certamente criminoso, mas ainda assim um blá-blá-blá que, em outros tempos, ficaria restrito ao submundo da internet (e que, antes disso, ficava restrito às conversas de bar).
Ou seja, em alguma medida, o caso da cobertura de Marielle Franco – obviamente, não apenas ele, mas encaro-o aqui como uma espécie de gota d’água que transbordou o copo – acaba configurando uma situação que força, inclusive, o jornalismo (especialmente de televisão) a colocar os limites sobre a sua atuação e esclarecê-los à audiência. É como se os telejornais dissessem: querendo ou não, seguimos sendo os arautos da verdade, as fontes mais confiáveis que a população deve consultar quando precisar ter certeza sobre o que de fato acontece no mundo lá fora.
Se outrora imaginávamos, na imagem eternizada de forma infeliz pelo apresentador William Bonner, que a televisão precisava se comunicar com o Homer Simpson (ou seja, com o mais estúpido dos espectadores), hoje já assumimos que as coisas se complexificaram. A audiência migrou para a internet e de lá precisa ser, em alguma medida, “resgatada” por veículos mais confiáveis.
No entanto, é preciso notar que a mensagem que desenha por trás dessa intenção, possivelmente imprevista, é o reconhecimento e a validação da potência das redes sociais enquanto disseminadoras de informação – mesmo que seja da pior qualidade possível. Não deixa de ser um jeito de revelar que, de uma forma ou outra, a TV tem falhado em seu papel.