Cá estamos, mais uma vez, refletindo sobre este pequeno grande evento da TV brasileira deste ano, que foi o MasterChef Brasil. A primeira edição de MasterChef Profissionais foi um momento midiático de forte repercussão, principalmente, fora da TV – e nos revelou, mais uma vez, o quanto os programas a que assistimos falam mais sobre o mundo do que parecemos notar à primeira vista.
Conforme já abordado diversas vezes nesta coluna, por trás de uma TV que fala sobre nada, normalmente se esconde uma discussão relevante e que amplia, em certas medidas, os anseios coletivos e os temas que acontecem no “mundo lá fora”.
Em pleno 2016, creio que isto tudo já é bastante evidente e mesmo lugar-comum, mas talvez em MasterChef Profissionais tenhamos chegado a um ponto chave, suscitando uma dúvida: será que o programa fala sobre tal assunto, ou de fato a edição está enfatizando (ou manipulando, conforme o olhar que se emprega) certos elementos para que o programa passe a falar disso? Entendendo que os reality shows seriam, por essência, o formato da “vida real”, com todas as suas aspas, é possível utilizá-los para criar a narrativa que convém a uma emissora?
Como bem sabem todos os que acompanharam MasterChef Profissionais, o programa tematizou a questão do empoderamento feminino e as formas pelas quais as mulheres, astutamente, encontram brechas para subverter as atitudes machistas que ainda persistem nos ambientes sociais. A questão do empoderamento é um tema, claro, vigente nos últimos anos, e muita coisa mudou desde então também por causa do agendamento desta discussão pelas mídias. Lembraria, por exemplo, que até o Big Brother Brasil deste ano tratou tangencialmente disto por meio da ultra polêmica personagem Ana Paula.
A edição de MasterChef Profissionais era uma oportunidade riquíssima para tratar disso. Afinal, o próprio palco do programa reproduz um universo que, pelo que sabemos por relatos de participantes deste ambiente, é essencialmente machista: as cozinhas profissionais. Outrora reservado apenas às mulheres, às obrigações e às trocas do feminino, as cozinhas dos restaurantes se tornaram um local do mundo dos negócios, reproduzindo episódios machistas (na maioria das vezes, velados – e é por isso que é tão importante falar sobre a cultura do estupro) e sendo comandadas por homens de postura autoritária.
Com tudo isso, podemos dizer que a Band tirou a sorte grande com a escolha do elenco de MasterChef Profissionais. O panteão de personagens parecia escolhido a dedo: homens e mulheres de temperamentos e talentos diversos. Dentre eles, Ivo, um chef de experiência e bastante premiado, reconhecido pelos pares, e sem muita paciência com os menos experientes – especialmente as mulheres. Havia ainda um séquito masculino, com cozinheiros que formaram, ao longo do programa, uma espécie de fraternidade: eles pareciam só ver competência uns nos outros. E correndo por fora, uma “zebra”: surge a cozinheira Dayse, menos efusiva (ou seja: um personagem de reality show menos interessante) e, aparentemente, menos segura que os demais.
Mas algo (que talvez não tenha sido previsto inicialmente pela Band) aconteceu ali: o programa passou a ser significado coletivamente como um diagnóstico preciso sobre a vida das mulheres no Brasil. Cenas acontecem envolvendo Ivo, o de pouca paciência, que tem ali como colega uma ex-funcionária, Dayse, a quem, em certos momentos, menospreza, é rude, manda varrer o chão. A confraria masculina se fortalece e eles passam a apontar Dayse como a mais fraca, a participante que obviamente não tem quaisquer chances de vitória. Resultado: aos poucos, ela vai adquirindo protagonismo a cada episódio que passava.
Algo (que talvez não tenha sido previsto inicialmente pela Band) aconteceu em MasterChef Profissionais: o programa passou a ser significado coletivamente como um diagnóstico preciso sobre a vida das mulheres no Brasil.
A partir daí, o programa se reconfigura e se torna mais relevante: passa a parecer, a todos nós, uma perfeita alegoria da vida das mulheres e daquilo que elas vivenciam cotidianamente simplesmente por não serem homens. Como conclusão, Dayse, que começou como “azarão”, sagra-se vencedora do reality show, satisfazendo as vozes de sua torcida que repercutia nas redes.
Foi um resultado justo ou não? Apesar dos protestos da família do concorrente de Dayse (que foi significado ao longo do programa como criativo e ousado, enquanto ela seria conservadora), é bastante difícil chegar a qualquer conclusão, uma vez que este se trata de um reality show profissional, no qual os resultados são estabelecidos por especialistas da área abordada. Diferente de outros realities deste estilo, como O Aprendiz, MasterChef ainda estabelece uma barreira intransponível ao espectador, a dos sentidos: os pratos não podem ser experimentados por nós, e qualquer opinião não deixa de ser especulação.
No entanto, creio que, de certo modo, todo esse debate acaba por esconder a verdadeira riqueza desta edição, que era a personalidade de sua protagonista. Em alguma medida, Dayse foi “forçada” a encaixar-se em certos papéis, dos quais escapava brilhantemente, pelas beiradas. Explico: durante todos os episódios, Dayse destacou-se pela presença de espírito nas suas reações. Em vários momentos, foi indagada pelos jurados se iria chorar (afinal, reality shows precisam de momentos de comoção genuína e, além disso, é natural que mulheres chorem, não?), ao que respondia que tinha o “coração peludo”.
Em outro momento, ao fazer um prato considerado o melhor entre os competidores, ouve do concorrente Marcelo: agora você tem o meu respeito (eis aqui, na visão desta colunista, o momento mais machista da edição, do menosprezo que se traveste de elogio vindo de alguém superior). Às câmeras da Band, com humor, ela se revela indiferente: não está nem aí para a legitimação conferida pelo colega. No último episódio, ao ser perguntada sobre seu sonho, ela era responde que era “quitar seu apartamento” e “casar” (de novo, Dayse escapa daquele papel pré-estabelecido a ela por muitos – inclusive por nós, espectadores).
Se Daisy deve ou não ser encarada como um símbolo feminista é o menos importante. Mas, de fato, a sua participação neste MasterChef carrega um ensinamento fundamental: a de que o tal empoderamento se dá por ações, não por palavras. Que este empoderamento se dê pela subversão daquilo que querem os homens e daquilo que as mídias esperam dela: eis aqui, de fato, a grande força e a grande mensagem de Dayse.