Em 27 de abril de 1953, o governo dos Estados Unidos iniciou uma ofensiva contra seus funcionários homossexuais. A ordem executiva 10.450, do presidente republicano Dwight D. Eisenhower, deu início a uma caça às bruxas direcionada aos trabalhadores envolvidos em atividades consideradas riscos à segurança nacional, incluindo o que era rotulado como “perversões sexuais”. Assim se desencadeou o que os historiadores posteriormente denominariam de Lavander Scare, uma sequência menos divulgada, mas igualmente devastadora, da “Caça às Bruxas Vermelha”, que se estima ter levado à perda de emprego de até 10 mil gays e lésbicas. Algumas investigações terminaram de forma mais trágica, com suicídios.
Apenas alguns meses antes da emissão dessa ordem que os amantes, por vezes no cerne do vibrante, perspicaz e frequentemente avassalador drama histórico Companheiros de Viagem, no catálogo do Paramount+, têm seu primeiro encontro. Adaptada do romance de Thomas Mallon, lançado em 2007, a série tem como um de seus protagonistas Hawkins Fuller (interpretado por Matt Bomer, de Maestro), astuto assessor político de um senador de alto escalão, Wesley Smith (Linus Roache, de O Padre), para ele uma espécie de figura paterna. A filha de Smith, Lucy (Allison Williams, de Corra!), também está em seu horizonte, como a possibilidade de um casamento conveniente.
Para Hawk, não é um incômodo esconder seus encontros anônimos com outros homens. Em seu entendimento, a vida é um constante ato performativo, no qual os fins justificam os meios e todos desempenham fachadas sociais. “Sou um republicano registrado, mas não voto porque não vejo sentido”, explica Hawk, acrescentando que sente o mesmo em relação à religião. Ele não acredita em muita coisa até que conhece Tim Laughlin, um jovem recém-chegado à cidade, interpretado pelo britânico Jonathan Bailey (da série Bridgerton), que venceu neste ano o Emmy de melhor ator coadjuvante em minissérie ou telefilme.
Tim entra em sua vida de forma contundente, ainda assim, a palavra amor não está jamais no vocabulário de Hawk – ele a evita a todo custo. Transbordando sinceridade católica irlandesa, e certa ingenuidade, Tim sonha em ajudar seu ídolo, o senador Joseph McCarthy (interpretado por Chris Bauer), a salvar o mundo da praga do comunismo soviético. Ao mesmo tempo, está desesperado para superar sua homossexualidade, que ele uma vez experimentou com culpa, tendo sido criado para acreditar que sexo gay é um pecado mortal.
O que era para ser um encontro sexual fugidio evolui para algo bem mais profundo, e Hawk consegue um emprego no escritório de McCarthy para Tim – a quem ele apelida de Skippy, por sua ingenuidade de cabelos bagunçados. No trabalho, Tim se torna testemunha ocular das maquinações ousadamente hipócritas do senador e de seu vice, Roy Cohn (interpretado por Will Brill), enquanto o ataque às “atividades antiamericanas” invade as vidas e a intimidade dos protagonistas.
‘Companheiros de Viagem’: narrativa não linear
As linhas do tempo paralelas aliviam a pressão narrativa. Os espectadores nunca têm a chance de imaginar que Hawk e Tim viverão felizes para sempre.
Sabemos desde o início da série que o romance perigoso no centro de Companheiros de Viagem está destinado a terminar. A cena de abertura, ambientada em 1986, molda o caso de amor de Hawk e Tim – assim como as histórias perfeitamente incorporadas de outros personagens queer, incluindo um jornalista negro (interpretado por Jelani Alladin) e um casal lésbico (interpretado por Erin Neufer e Gabbi Kosmidis) – como um flashback da juventude dos dois amantes.
Três décadas e meia depois, Hawk é um avô distinto celebrando um aguardado cargo diplomático em Milão com uma festa em sua mansão suburbana espaçosa e Lucy, já ao seu lado como dedicada esposa. No entanto, quando recebe a notícia de que Tim está morrendo de Aids em São Francisco, ele parte para a Califórnia, apesar de ter motivos para acreditar que seu antigo amor não deseja vê-lo.
As linhas do tempo paralelas aliviam a pressão narrativa. Os espectadores nunca têm a chance de imaginar que Hawk e Tim viverão felizes para sempre. Em vez disso, ficamos para descobrir o que os separou e quando. As respostas, e são muitas, estão fundamentadas nas realidades sociais e políticas das eras que Companheiros de Viagem atravessa: os anos 50 do Lavander Scare dão lugar aos anos 60 de lutas pelos direitos civis, aos mais permissivos anos 70 pós-Stonewall e à devastação da crise da Aids dos anos 80, acompanhada pelo perturbador silêncio do governo norte-americano diante de uma doença que dizimou uma geração de homens gays.
Hawk, Tim e seus amigos têm personalidades distintas, às vezes profundamente contraditórias e não necessariamente heroicas. Hawk coloca sua carreira, e seu plano de longo prazo de se mudar para o exterior para viver livre e rico, em primeiro lugar. Destinado a se desiludir com McCarthy, Tim encontra novas causas às quais se dedica fervorosamente. E os destinos dos dois refletem as escolhas que fazem por serem quem são. Cada um se torna o grande amor do outro, embora não possam deixar de decepcionar um ao outro.
Tal especificidade certamente reflete um engajamento cuidadoso por parte do criador da série Ron Nyswaner (mais conhecido como o roteirista de Filadélfia e produtor executivo da série Homeland) com o romance de Mallon.
Bailey e Bomer têm atuações complexas, ousadamente físicas. Hawk e Tim são reprimidos em público, mas atrás de portas fechadas seus desejos complementares se manifestam. Nunca higienizado em deferência ao olhar heterossexual, o sexo no filme é tudo menos gratuito. O jogo de poder dos amantes serve para aprofundar sua compatibilidade, e contradições.
Companheiros de Viagem não prega a libertação. Vai mais longe: encarna a libertação de forma dramaticamente complexa. Estudo de caso da vida política gay nos Estados Unidos na segunda metade do século XX, seus oito episódios compõem um lindo drama romântico em um meio que raramente parece adequado ao gênero. Hawk, esperto e egoísta, e Tim, abnegado, são como ímãs, mas suas visões sobre como sobreviver em um mundo que odeia pessoas como eles são mutuamente excludentes. É a história de um amor tão intenso quanto impossível.
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