Em Guerreiros do Sol, George Moura e Sergio Goldenberg retornam ao sertão brasileiro com o domínio narrativo de quem há muito investiga os interstícios entre memória, história e dramaturgia. A nova produção do Globoplay — nomeada de forma deliberada como “novela”, mas estruturada com a precisão de uma série de prestígio — tensiona fronteiras entre gêneros e discursos para propor uma reinterpretação do cangaço que se afasta da iconografia romantizada e resgata suas complexidades éticas, políticas e simbólicas.
A abertura da obra já estabelece um tom inusitado. Em vez de nos oferecer um prólogo expositivo, a narrativa irrompe com uma sequência de 13 minutos que impressiona pela construção visual e pela coreografia da ação. É nesse momento que se revela o termo “novela” como rótulo oficial do produto. A escolha, longe de ser apenas nominal, demarca o desejo da Globo de ressignificar o folhetim clássico dentro do ecossistema do streaming — não como algo ultrapassado, mas como um veículo potente para discutir o Brasil com densidade, camadas e apelo popular.
Guerreiros do Sol dialoga diretamente com outras produções que revisitaram o cangaço ao longo das décadas. Ao contrário da idealização heroica de O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, ou da alegoria política em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, a série opta por uma via mais ambígua e desromantizada, inspirada no trabalho historiográfico de Frederico Pernambucano de Mello. Seu livro homônimo, que fundamenta livremente o roteiro, desmonta o mito de Lampião como justiceiro social, sugerindo que o cangaço funcionava como uma engrenagem de poder e lucro, legitimada por discursos morais cuidadosamente construídos pelos próprios cangaceiros.
A figura de Josué Alencar, protagonista interpretado pelo talentoso Thomás Aquino, encarna essa ambivalência. Vingador e herói trágico, ele justifica sua entrada no bando como resposta à brutalidade de um sistema violento e patriarcal. A série flerta com esse “escudo ético” — conceito mobilizado por Mello para explicar como os cangaceiros justificavam seus atos —, mas o faz sem endossá-lo por completo. A ambiguidade, aqui, é não apenas narrativa, mas política. O espectador é constantemente convidado a refletir sobre as motivações dos personagens, seus pactos morais, suas escolhas e contradições.
O cangaço, nesse contexto, aparece menos como um fenômeno regional do passado e mais como uma lente através da qual se podem observar dilemas persistentes da sociedade brasileira. Machismo, assédio, fundamentalismo religioso, ignorância científica e desigualdade social não são apenas temas de fundo: são motores dramáticos que sustentam os conflitos centrais da história. Assim, Guerreiros do Sol opera como espelho oblíquo do presente, usando o sertão de 1930 para falar das feridas expostas do Brasil contemporâneo.
Machismo, assédio, fundamentalismo religioso, ignorância científica e desigualdade social não são apenas temas de fundo: são motores dramáticos que sustentam os conflitos centrais da história.
É notável o cuidado formal da obra. A direção investe em planos longos, encadeamentos pausados e escolhas de mise-en-scène que conferem uma espessura estética rara na televisão aberta brasileira. Há ecos de Onde Nascem os Fortes — outra parceria de Moura e Goldenberg — na forma como a geografia do sertão é integrada à dramaturgia, funcionando quase como um personagem. A fotografia e o desenho de produção, por sua vez, reforçam uma materialidade árida e densa, que distancia a obra das paletas solarizadas e pitorescas de novelas de época convencionais.
Essa sofisticação, no entanto, convive com escolhas que reafirmam a vocação popular da narrativa. A narração em off da protagonista Rosa (Isadora Cruz, estrela inconteste da nova geração), os arcos melodramáticos, os triângulos amorosos e os vilões caricatos remetem à gramática do folhetim tradicional, embora inseridos num contexto mais contido e autoconsciente. Essa coexistência entre alta e baixa cultura, entre refinamento formal e apelo popular, é o cerne do projeto — e também seu maior risco. Em mãos menos experientes, tal mistura poderia resultar em desequilíbrio; aqui, ela se revela como um exercício de costura cuidadosa entre linguagens.
A aposta da Globo no selo “novela” também tem implicações mercadológicas. A renomeação do canal Viva para Globoplay Novelas, com destaque para Guerreiros do Sol em sua programação inaugural, é um gesto estratégico: não se trata apenas de reviver um gênero consagrado, mas de atualizá-lo, de conferir-lhe prestígio e renovada relevância cultural. Em tempos de disputas por atenção em múltiplas telas, há um esforço consciente de reconfigurar o folhetim como produto nobre — não apenas de consumo, mas de reflexão.
Ao final dos cinco primeiros episódios, o que se observa é uma obra em estado de tensão criativa: entre passado e presente, entre documento e ficção, entre tradição e ruptura. Resta saber se, ao longo de seus 45 capítulos, Guerreiros do Sol terá fôlego para aprofundar o debate sobre a mitologia do cangaço ou se cederá às tentações do melodrama convencional. Por ora, o que se vê é uma obra que ousa. E só isso já a distingue em meio à paisagem repetitiva da teledramaturgia contemporânea.
Se Lampião e Maria Bonita (1982), pioneira minissérie da TV Globo, inaugurou um novo olhar sobre o cangaço ao aproximá-lo da psique dos personagens, e se Cordel Encantado (2011) reinterpretou esse universo com um toque de fábula e lirismo, Guerreiros do Sol propõe uma síntese: conjuga a brutalidade histórica com a pulsão mítica e propõe, mais que uma representação, um reposicionamento. Não é pouco.
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