Você pode não ter assistido a um capítulo de Pantanal. Ainda assim, não terá como negar: a novela foi um sucesso retumbante, e provavelmente trouxe ainda mais frutos do que foram imaginados pela Globo. O êxito certamente não é medido apenas por índices de audiência (que foram muitos bons, diga-se de passagem), mas sim pela quantidade (e qualidade) do engajamento que conseguiu gerar com a população. Penso que não víamos nada desde tipo desde 2012, quando Avenida Brasil foi ao ar.
Ocorre que Avenida Brasil ainda pegava um momento histórico diferente: em alguns aspectos, as redes sociais eram mais precárias e geravam menos buzz do que hoje. Em 2022, dez anos depois, o alcance da TV aberta, especialmente junto aos jovens, está cada vez mais difuso. Não obstante, esta camada do público trouxe boa parte da repercussão e dos memes sobre a novela.
Em março, quando Pantanal começou, escrevi sobre a intenção da TV Globo de resgatar a tradição do que chamo de “novelas-evento”. Falo sobre narrativas potentes difundidas em uma época em que os cidadãos tinham bem menos opções de entretenimento, e a televisão reinava absoluta. Quem acompanhou folhetins como Tieta, de Aguinaldo Silva, em 1989, ou Renascer, de Benedito Ruy Barbosa, em 1993, sabe que estas foram novelas que mobilizaram muita gente e fizeram com que as pessoas parassem para falar sobre os personagens e incorporassem jargões do texto em sua vida cotidiana.
É talvez estranho imaginar que Pantanal tenha conseguido este feito, sendo que ela é um remake da novela exibida em 1990 pela TV Manchete – que já havia feito muito sucesso. Ou seja, aqui não se parte de nada novo, mas de uma história antiga, reescrita por Bruno Luperi, neto do autor original (o mesmo Benedito Ruy Barbosa, de Renascer). A seguir, tento apresentar alguns argumentos que podem talvez explicar a glória absoluta desta nova versão.
Uma ‘Pantanal’ densa e simples ao mesmo tempo
Pantanal girava em torno de uma história cujo centro é pouco claro – ou, pelo menos, pouco afeito a explicações simples. Diferente de outras novelas, aqui a mola propulsora da trama não são temas tradicionais dos folhetins, como amor perdido, busca de vingança, traições, etc.
Se pudermos explicar de forma breve, poderíamos dizer que Pantanal tematizava o confronto entre a natureza e o homem, entre aquilo que criamos na terra e aquilo do qual simplesmente não podemos fugir.
Esta ideia – que traz o tempo todo a proximidade com o conceito de destino – atravessa vários personagens: José Leôncio, que perde o pai sem saber o que aconteceu com ele, e segue por décadas atrás de explicações; o filho Jove, que recebe as benesses da urbanidade, mas se sente atraído para a sua história (a tradição dos Leôncio como homens do campo).
É quase como se fossem reinterpretações do mito de Édipo: quanto mais aqueles sujeitos tentavam fugir de sua história, mais se aproximavam dela.
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Se pudermos explicar de forma breve, poderíamos dizer que Pantanal tematizava o confronto entre a natureza e o homem, entre aquilo que criamos e aquilo que simplesmente não podemos fugir.
Ao mesmo tempo, há a questão dos saberes vindos da oralidade, nas culturas tidas como “primitivas”, e que costumam ser confrontadas frente aos saberes mais “científicos”. Entra aqui a história de Juma Marruá, cuja mãe se transforma em onça, e o Velho do Rio, que vira cobra.
Durante a novela, os personagens questionavam o tempo todo estes “fatos” e desmereciam quem defendia estas crenças. Inevitavelmente, aquilo que não podia ser explicado, do mundo encantado, acabava prevalecendo.
De alguma forma, daria então para afirmar que Pantanal remonta à tradição de narrativas ancestrais, que parecem planas à superfície, mas que carregam mensagens densas em suas tantas camadas.
No que poderia parecer aparentemente uma história sobre gente simples do campo, acabava falando sobre questões de amor paternal e filial (a devoção de José Leôncio ao pai Joventino), de amor impossível (Jove e Juma), da superficialidade da fama e da imaturidade emocional (Madeleine), de vingança (Muda), da cobiça das velhas elites (Mariana), da carência que faz com que alguns vivam a vida dos outros ao invés das suas (Irma e Gustavo).
Novos temas em uma novela sobre assuntos ancestrais
Em meio a este caldo, temas contemporâneos foram inseridos. A discussão sobre masculinidades possíveis, como bem apontou Paulo Camargo aqui na Escotilha, trouxe ar novo à trama antiga. Os diferentes espectros da sexualidade também foram trazidos à trama atualizada de Pantanal, em papeis como de Zaquieu (Silvero Pereira), o mordomo gay que ousa querer ser peão, e Guta (Julia Dalavia) e Maria Bruaca (Isabel Teixeira) – a primeira, a filha criada na cidade que que choca por ser liberada sexualmente; a segunda, a mulher humilhada pelo marido abusivo que descobre o prazer com outros homens que não ele.
Não é pouca coisa. Mas penso que nada disso daria certo se a novela não tivesse agrupado grandes atores, muito competentes para defender os seus papeis e torná-los, individualmente, uma trama específica, capaz de chamar a atenção e o engajamento do público.
A impressão que dá é que a TV Globo chamou para este remake de Pantanal a nata dos artistas brasileiros, muitos deles nem tão afeitos assim à televisão. É difícil mencionar todos, mas destaco atrizes e atores como Isabel Teixeira, Karine Telles, Irandhir Santos, Jesuíta Barbosa, Selma Egrei, Silvero Pereira. E, claro, não há como não prestar reverência ao Velho do Rio de Osmar Prado, provavelmente o maior ator vivo do Brasil.
Com todos estes elementos, Pantanal se tornou uma atração perfeita para os corações desolados de boas histórias em rede nacional. Fica agora a expectativa para que este fenômeno não leve mais dez anos para se repetir.
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