Maíra, a heroína da novela Todas as Flores, que acaba de ter seus primeiros capítulos lançados na plataforma de streaming Globoplay, não poderia ser mais folhetinesca. Vivida pela talentosa Sophie Charlotte, ela é uma jovem cega, criada pelo pai em Pirinópolis, cidade histórica do interior de Goiás, acreditando ser órfã de mãe. Não é.
Na melhor tradição do melodrama clássico, Maíra, que tem um olfato privilegiado e sonha em ser perfumista, é surpreendida pelo ressurgimento inesperado de Zoé (Regina Casé), que vai ao coração do Brasil em busca da filha perdida. Jura de pés juntos que a jovem foi sequestrada quando meninas pelo ex-marido (Chico Diaz), que morre, já no episódio inicial, em decorrência de um ataque cardíaco fulminante, precipitado pelo aparecimento inesperado da mãe de sua filha.
A missão de Zoé, no entanto, não é recuperar o tempo perdido com Maíra. Sua outra filha, Vanessa (Letícia Colin), está com leucemia e precisa da irmã como doadora compatível de medula óssea. Inocente útil, Maíra é, então, levada pela mãe ao Rio de Janeiro, onde irá se apaixonar por Rafael (Humberto Carrão), noivo da inescrupulosa Vanessa, que não o ama e só está interessada no dinheiro do rapaz, herdeiro da Rhodes, uma grande marca de roupa, acessórios e – olha, vejam só! – perfumes.
Escrita por João Emanuel Carneiro, autor de Avenida Brasil, a mais importante novela exibida neste século, Todas as Flores, aparentemente, não traz nada de muito novo em termos de teledramaturgia. Afinal, tem como protagonista uma mocinha cega.
Mas o folhetim, por mais que não fuja em sua essência da matriz melodramática mais tradicional, não se apropria dela sem, também, subvertê-la. Zoé, que inicialmente seria interpretada por Glória Pires, expert em vilãs, ganhou outras nuances na pele de Regina Casé.
Com uma narrativa ágil e diálogos inspirados, cortantes, Todas as Flores promete em vários aspectos.
Após viver icônicas personagens da classe trabalhadora, como as abnegadas e heroicas protagonistas do filme Que Horas Ela Volta? e da novela Amor de Mãe, Regina traz um frescor inesperado a Zoé, que de maternal não tem nada: alpinista social, a personagem ganha a vida traficando pessoas e, embora tenha ascendido socialmente, sua aparente sofisticação é só casca, camada fina de verniz. Saiu da Gamboa, região pobre do Centro do Rio, berço do samba, mas o bairro segue firme e forte dentro dela.
Essa dicotomia, quando defendida por uma atriz que vai do drama à comédia, e vice-versa, em um estalar de dedos, como Regina Casé, já faz de Zoé uma vilã atípica. Só para ser ter uma ideia, a personagem é amante do pai do noivo da filha, Humberto (Fábio Assunção), que conhece desde os tempo da Gamboa. Os dois fizeram uma parceria com o objetivo de se livrarem da pobreza, dando o golpe do baú em Guiomar (Ana Beatriz Nogueira), mãe de Rafael.
Regina traz uma bem-vinda “bagaceirice” à antagonista Zoé, que faz dobradinha espetacular com Letícia Collin, perfeita como a politicamente incorreta, preconceituosa e malvada até a medula (sem trocadilhos) Vanessa, espécie de reencarnação século XXI de Maria de Fátima, icônica vilã vivida por Glória Pires no clássico Vale Tudo (1988), de Gilberto Braga.
Aliás, se João Emmanuel Carneiro, um dos roteiristas do filme Central do Brasil, descende, artisticamente, de algum teledramaturgo brasileiro é, com certeza, de Braga, pelo viés da acidez com que constrói suas tramas na qualidade de crônicas folhetinescas da sociedade brasileira, retratando seus paradoxos e abismos.
Com uma narrativa ágil e diálogos inspirados, cortantes, Todas as Flores, que terá cinco novos capítulos lançados toda quarta-feira, promete vastas emoções em vários aspectos. Tanto que a Globo já parece ter se arrependido de ter colocado no ar, no horário das 21 horas, a muito inferior Travessia, novela de Glória Perez que parece anacrônica, ultrapassada, cafona mesmo, se comparada ao folhetim de João Emanuel Carneiro.
Em tempo: um dos maiores destaques de Todas as Flores é o grande numero de personagens negros importantes na trama, a começar por Judite, inimiga número um de Zoé e madrinha de Maíra, vivida pela excelente Mariana Nunes, que rouba a cena nos primeiros cinco episódios disponibilizados pelo Globoplay. O casal de pagodeiros Oberdan (Douglas Silva), obcecado por sexo, e Jussara (Mary Sheyla), sempre aos tapas e beijos, devem garantir boa parte do alívio cômico à trama. Agora, é esperar para ver.
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