Chegou ao fim a esperada adaptação da Globo ao romance histórico Dois Irmãos, do escritor manauara Milton Hatoum. A versão televisiva do clássico havia gerado bastante expectativa, pois enfrentaria o desafio da adequação de uma obra complexa, dramaticamente pesada, para este que é o mais democrático dos meios de comunicação.
E eis que a versão televisiva vem pelas mãos do diretor Luiz Fernando Carvalho, cujas obras se caracterizam por uma identidade estética forte e inconfundível, trazendo sempre ao público narrativas únicas e algo dissonantes das que costumamos ver nesse meio (ele dirigiu, por exemplo, as novelas Velho Chico, Renascer e O Rei do Gado e as minisséries Capitu e Hoje é Dia de Maria).
Conforme esperado, Dois Irmãos chegou às telas por meio de uma adaptação marcada pela densidade, pela fidelidade ao estilo do diretor (uma estética algo barroca, identificada pelos contrastes de cores e luz) e pela narrativa por vezes silenciosa, muito visual, que, conforme apontou o crítico Nilson Xavier, demandava contemplação, uma dedicação extra do espectador, cada vez mais acostumado a dividir sua atenção entre a TV e outras tarefas.
Ou seja, Carvalho mais uma vez concretizou uma espécie de televisão atípica, no sentido de que abria poucas concessões a um chamado “gosto do público” em prol de uma alta qualidade do produto apresentado. Em entrevista ao jornalista Maurício Stycer, o diretor deixou isto bastante evidente: disse que Dois Irmãos, nesse sentido, é uma vitória da TV, uma vez que obteve bons resultados, mesmo não sendo uma minissérie fácil de ser acompanhada.
Se a TV é essencialmente um veículo às massas, como seria possível falar à população senão da forma mais rasa que se encontrar? A televisão é simplória por, se não fosse assim, simplesmente não criaria zonas de contato com o público?
Carvalho ainda esclarece em sua fala, com muita honestidade, sua posição quanto ao seu trabalho: “sou herdeiro de uma geração de diretores que me ensinou a não dar exatamente o que a audiência pede – infelizmente ela é movida pela indústria mais rasa de consumo, pela precariedade do ensino, pelo abandono de setores ligados à cultura, pela quase nula formação da população, e por aí vai-se… Precisamos oferecer algo que desestabilize esse modelo hegemônico, acachapante, e nos permita existir também”.
Esta é uma questão fundamental à televisão: se nós acordamos que os produtos televisivos têm menos qualidade que outras (como as literárias, cinematográficas, etc.), isto se dá exatamente por quê? Em alguma medida, este é um debate insolúvel e que existe desde o início da TV. Trata-se de uma espécie de enigma ao estilo “Tostines é fresquinho por que vende mais?”. Ou seja, a TV é um entretenimento fácil por nossa causa, ou é ela que reduz o nosso gosto?
![dois irmãos](http://www.aescotilha.com.br/wp-content/uploads/2017/01/Dois-Irmãos-1024x573.jpg)
Resumidamente, o dilema seria: se a TV é essencialmente um veículo às massas – marcadas, conforme aponta Luiz Fernando Carvalho, pela precariedade do ensino brasileiro, pelo baixo acesso à cultura e pelas lacunas gerais da sua formação – como seria possível falar à população senão da forma mais rasa que se encontrar? A televisão é simplória pois, se não fosse assim, simplesmente não criaria zonas de contato com o público?
Dizer que o veículo em si é essencialmente menor que os outros talvez seja colocar demasiadamente a ênfase no meio de comunicação e não nas pessoas que o fazem. Afinal, talvez haja filmes e livros ruins na mesma medida que temos programas televisivos bons – embora não tenhamos a predisposição a reconhecer isso. É neste espírito que, na época de programas como o BBB, que reestreia hoje, levanta-se aquele mar dos descontentes que defendem o lema “desligue a televisão e vá ler um livro” – embora este livro possa ser um best seller de má qualidade ou alguma obra de autoajuda corporativa.
É claro que qualidade é um conceito complexo e abstrato, de difícil mensuração (muitos poderiam dizer que, onde alguns veem virtudes de Dois Irmãos, há apenas chatice, pretensão). Mas em suma, o que se discute, de certa forma, é que haveria uma espécie de abismo entre a população e a qualidade – ou seja, a TV não aposta na sofisticação, pois isso seria divorciar-se fatalmente daqueles a quem pretende falar.
O raciocínio pode desencadear, por outro lado, uma forma de culpabilização do público pelo nível raso daquilo que ele recebe. Em resumo: se tal programa ruim dá audiência, é um sintoma bastante claro de que a população encontra alguma identificação com aquilo que vê, e por isso será muito difícil emplacar outra coisa melhor.
É a lógica que se aplica a certos programas popularescos da TV aberta, fundamentados na ideia de atender demandas da população. Existe, inclusive, uma visão oposta à da falta de qualidade, que é a defesa do uso da “linguagem popular”. Um dos símbolos destes programas, o apresentador Geraldo Luís teceu a trama deste raciocínio em sua participação no Programa do Porchat: “televisão é uma janela. O povo gosta do simples. Tá faltando o simples na televisão”.
Ao ser perguntado por Porchat sobre a fama de sensacionalista, Geraldo Luís ainda respondeu: “Chacrinha foi chamado de sensacionalista, Flavio Cavalcanti foi, Gugu foi, até Silvio Santos foi. Sensacionalista é aquele que inventa, mas eu não invento. Eu sou um contador de histórias. Tudo aquilo que você faz para o povo existe este rótulo idiota, inclusive de perseguição, que fala que o programa é sensacionalista. Eu tenho a linguagem do povo, eu falo aquilo que o povo entende”. Em seguida, começa a imitar (e a zoar) aqueles que falam “difícil”, de forma mais sisuda, com termos mais complexos.
Conforme já dito no início, este é um debate infindável, mas que sobretudo demanda de nós – tanto os que se dedicam à crítica de televisão quanto a produzi-la – uma atenção mais próxima àqueles que são os principais interessados, ou seja, o público. Ainda que sua fala esteja revestida de uma demagogia simplória, em uma coisa Geraldo Luís está certo: se estes programas populares estão “chegando na veia popular” é porque, em alguma medida, eles conseguem algo que a TV “de qualidade” nem sempre consegue. O que tantos programas fazem com este (grande) poder em mãos é, de fato, a questão que precisa ser enfrentada.