Na semana anterior, depois de 100 dias, chegou ao fim o chamado “Big dos Bigs”, como a Rede Globo se referenciava o tempo todo ao Big Brother Brasil 21. Difícil dizer se foi o maior de todos, mas uma coisa é certa: nenhuma torcida foi tão debatida na história do programa do que a da participante paraibana Juliette Freire, que se sagrou vencedora.
Os movimentos externos à casa, envolvendo a repercussão em torno do seu nome e as ações feitas pelos seus fãs, que se autodenominaram “cactos”, fizeram com que seu favoritismo se expressasse logo no começo do BBB21. De alguma forma, as cartas já estavam marcadas: praticamente toda a audiência bem informada sobre este reality já sabia que ninguém tinha chance contra Juliette. E o responsável por essa vitória foi o seu fandom, que se incumbiu de carregar seu nome e votar incansavelmente a favor dela.
Para quem não sabe, o termo fandom (uma fusão, no inglês, entre fan, fã, e kingdom, reino) é um tipo de reunião de pessoas que se organizam em estratégias para defender o ídolo que amam. Com o avanço da cultura digital, os fandoms ultrapassaram barreiras e passaram a conectar gente que pode estar em qualquer lugar do mundo. Juntas, essas pessoas se mobilizam e definem táticas para poder lutar pelo sujeito que cultuam. No caso do BBB21, a principal ação foi organizar mutirões de votação para salvar Juliette do paredão (este processo está bem explicado no episódio “A tropa do reality”, do podcast Isto Está Acontecendo, de Chico Felitti).
Para entender melhor o fenômeno dos “cactos” de Juliette Freire, fomos conversar com dois pesquisadores do grupo de pesquisa CULTPOP – Cultura Pop, Comunicação e Tecnologias, vinculado a UNISINOS, situada em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Adriana Amaral é professora da Escola de Indústria Criativa da UNISINOS e pesquisadora do CNPQ na área de Cultura Digital e Cultura Pop. Eloy Vieira é jornalista e doutor em Comunicação pela UNISINOS, e seus estudos focam em tendências e audiências.
O BBB 21 chamou muita atenção para a força do chamado fandom da participante Juliette. Eu queria que vocês falassem um pouco sobre esse fenômeno da torcida de fãs e o quão novo é esse tipo de relação entre fãs/ ídolos.
Eloy: Esse tipo de organização em formato de torcidas não é nova e já vem do esportes desde o começo do século XX, mas o que tem de novo é o grau de organização garantido pelas plataformas digitais, inclusive com estratégias de marketing e comunicação que acompanharam todas essas mudanças de lá até aqui, especialmente com a visibilidade que esses processos, que antes eram bilaterais (entre fãs e ídolos) se torna multilateral e diretamente mediado, sobretudo, pelas redes sociais.
O fandom da Juliette em específico – os famosos “cactos” – não fogem dessa lógica, mas faria uma ressalva importante. Além da equipe de comunicação altamente qualificada e alinhada com a Juliette, a trajetória dela dentro do reality foi fundamental para que sua torcida ganhasse essa proporção, uma vez que ela foi alvo de diversas agressões dentro da casa, assumindo quase o papel de “mocinha” como numa telenovela.
As relações que ela soube estabelecer dentro da casa com os supostos vilões foram fundamental nesse processo, colocando muitos outros participantes como coadjuvantes da narrativa que ela dominou. Essa proximidade com o gênero melodramático, tão conhecido por nós a partir das novelas, a ajudou nesse processo de assimilação com a realidade das pessoas “injustiçadas” que merecem uma redenção, algo que sua equipe de redes sociais (os famosos ADMs) conseguiu aproveitar muito bem.
De alguma forma, as cartas já estavam marcadas: praticamente toda a audiência bem informada sobre este reality já sabia que ninguém tinha chance contra Juliette.
Uma das principais curiosidades em quem não participa desses fandoms é tentar entender o que leva pessoas dedicarem parte das suas vidas para cultuar e lutar por alguém que não conhecem. É possível arriscar um perfil desse tipo de fã de participante de BBB?
Eloy: Ao meu ver, o fã de BBB não foge à lógica de diversos fandoms que se organizam em torno de tantos produtos midiáticos ou ídolos. Talvez a única grande diferença seja o grau de participação que é demandado deles, uma vez que o público é fundamental nas decisões do reality em um modelo que lembra inclusive o modelo de participação popular na democracia representativa ocidental, algo que não ocorre na maioria dos programas de TV.
No entanto, esse grau de organização de torcidas de fãs é bastante presente na cultura pop como é o caso dos fandoms de KPop, por exemplo, que se organizam em nível global em atividades coordenadas que podem ir desde votar em concursos nos quais as bandas estão envolvidas até articulações para fazer com que seus ídolos apareçam no topo das plataformas de streaming.
Adriana: Acredito que nessas últimas 2 edições do BBB (2020 e 2021) houve um aumento na intensidade participação devido ao fator pandemia, no qual muitas pessoas estão ainda mais conectadas ou trabalhando em home office – em determinadas profissões e classes sociais, é claro – podendo acompanhar várias plataformas do programa (Twitter, Globoplay, canais no Telegram, Multishow , entre outros). Sobre essa dedicação, ela aparece em vários tipos de fandom das franquias às celebridades e ídolos musicais.
No entanto, o que vejo no BBB é que tem muito essa articulação com a identidade de cada participante. Como Eloy pontuou no caso de Juliette, teve o fator de dominância da narrativa em torno da “mocinha injustiçada”, a traição dos amigos entre outros e a própria articulação entre a narrativa dela na casa e o trabalho de social media dos ADMs.
Muito se falou das estratégias usadas nas redes sociais da Juliette, e que boa parte do seu sucesso e engajamento se deveu a esse trabalho feito nas redes, fora do programa. Como vocês avaliam as estratégias usadas? Um trabalho digital é crucial para a geração de um fandom? Daria para dizer que os outros candidatos perderam, em parte, por não terem usado estratégias semelhantes?
Eloy: Hoje em dia acho pouco provável que a gente consiga falar de qualquer fenômeno da Comunicação que não leve em conta pelo menos algum aspecto da Cultura Digital. Acredito que o trabalho da equipe da Juliette nas redes foi crucial. Sem isso, a narrativa dela no reality poderia ter se perdido, já que eles a ajudaram a conduzir a narrativa fora da casa, inclusive chegando a pessoas que nem acompanhavam o reality diariamente ou que não tinham acesso às imagens exclusivas do pay-per-view. Acredito que outros participantes, como o Gil, por exemplo, que teve um protagonismo evidente nesta edição, pecou bastante justamente neste ponto da condução da narrativa porque não foram tão sagazes, por exemplo, para aproveitar os bordões para transformar as imagens do programa em memes e virais que extrapolariam bastante o programa.
Além disso, algumas declarações do próprio Gil nos levam a perceber que, nem ele, nem a sua equipe estavam tão preparados para lidar com esse grau de protagonismo, tendo em vista que ele chegou a declarar que já havia comprado seguidores e que seu perfil ficou apenas na mão de um amigo de faculdade, enquanto Juliette já tinha algum tipo de posicionamento online com a ajuda justamente da amiga dela que é especialista e que coordenou todas as ações nas redes dela durante sua ausência.
Por fim, esse tipo de engajamento e mobilização entre um grupo é mais típico do entretenimento, ou será que podemos imaginar que algo semelhante possa ocorrer em outros campos (na política, por exemplo)?
Eloy: Entendo que esses movimentos não são indissociáveis do nosso contexto sócio-político. Não à toa, os mesmos “cactos” da Juliette foram chamados de “milícia digital” ou “gabinete do ódio” em claras alusões às nossas últimas eleições de 2018. Inclusive a imagem da própria Juliette chegou a ser comparada com a de Bolsonaro pelos seus anti-fãs e haters. Esse tipo de aproximação também não é novidade e já existem pesquisas dentro da Ciência Política que já falam dessa questão dos afetos que se tornam muito mais importantes num processo eleitoral em detrimento, por exemplo, das plataformas políticas. Algo que não é exatamente novidade para nós da Comunicação.
Adriana: Na verdade, quem vem pesquisando fãs e mobilizações online desde o início dos anos 2010 já observava esse cenário se desenhando. Até mesmo a chamada polarização já aparecia tanto nos fandoms como Lady Gaga X Madonna como na política e no futebol. Não há mais como dissociar questões políticas de questões de entretenimento. Essa é uma visão binarista de uma Modernidade que não funciona sobretudo no circuito dos afetos, consumo e circulações das lógicas e dinâmicas das plataformas digitais.
Quando estudamos os ativismos de fãs e de celebridades, já vimos a aproximação de táticas e estratégias de fãs e ativistas. Os próprios influenciadores digitais de política – de todos os espectros políticos – e os políticos também operam dentro dessas lógicas e relações e se utilizam de fatores como memes, votações de audiências, polêmicas, gifs, fanfics, etc, que fazem parte da cultura digital.
Vemos hoje que a digitalização da política enfatizou as dimensões de cultura do entretenimento e de fãs e que a cultura de fãs adotou táticas de ativismo e intensa politização das temáticas como cobrança de posicionamento de artistas (basta lembrar o caso Anitta, entre outros) e mobilizações como os K-Poppers X Trump, entre outros casos. Há camadas de nuances que vem sendo pensadas pelos estudos de comunicação digital, cultura pop e fãs, bem como pela área de comunicação política. Evidentemente, há diferentes gradações e camadas, e com certeza muitos desdobramentos ainda virão