Qualquer pessoa que esteja habituada a acompanhar uma telenovela (ou seja, qualquer brasileiro que esteja por volta dos 30 anos) sabe que uma das chaves do gênero é a continuidade. Derivadas dos folhetins (histórias de ficção publicadas em jornais em capítulos, de forma a atrair os leitores a comprar o periódico no dia seguinte), as novelas se baseiam na premissa da familiaridade e na expectativa pela completude da trama. Cada episódio termina com o recurso de roteiro que se chama de cliffhanger – a gente termina de assistir enquanto alguma situação fica “pendurada”, fazendo-nos voltar à novela no dia seguinte.
Em ano pandêmico, as novelas foram paralisadas em praticamente um ano. A maior expectativa se dava quanto ao retorno de Amor de mãe, novela das 21h da Globo, que se tornou uma queridinha do público e dos críticos, em razão de conseguir concretizar uma estrutura dramática que consegue ser, ao mesmo tempo, comovente e madura. Portanto, muita gente que gosta de TV estava contando os dias para o retorno da história escrita por Manuela Dias, que voltou a ser exibida semana passada.
Como retomar uma história depois de um ano, se a premissa das novelas é a continuidade? Manuela Dias tinha prometido que essa volta, que se centra em apenas 23 episódios, teria um “último capítulo” por dia. Isso significa dizer que haveria capítulos intensos e acelerados, quebrando um pouco o ritmo mais típico de uma novela tradicional, com muitas “barrigas” (cenas que não impactam na trama e levam a lugar nenhum). Com menos de 30 episódios em mãos, seria necessário dizer muito em pouco tempo.
Manuela Dias tinha prometido que essa volta, que se centra em apenas 23 episódios, teria um “último capítulo” por dia.
A julgar por esta primeira última semana, Amor de Mãe cumpre a promessa. As tramas envolvendo os núcleos de três mulheres (Lurdes, Thelma e Vitória) já começam a se encaminhar para uma conclusão. O cenário é pandêmico: todos estão lidando com as dificuldades de terem que se proteger do COVID, e vários personagens dizem, em suas falas, já terem pegado a doença. No entanto, há um certo anacronismo: Amor de mãe volta 6 meses depois do começo da pandemia, ainda em 2020, quando não sabíamos muitas coisas que hoje sabemos (como a possibilidade de ser recontaminado por COVID). A parte mais delicada dessa reconstituição provavelmente é a máscara usada por Álvaro (Irandhir Santos), claramente ineficiente, mas que remete, ao que parece, à simbólica máscara usada pelo personagem Hannibal em O silêncio dos inocentes.

O desafio de Manuela Dias era grande, e muitos espectadores apontaram certos pontos de inverossimilhança no roteiro. Dentre eles, elementos envolvendo os assassinatos de Thelma (Adriana Esteves), como a facilidade com que sua melhor amiga Jane (Isabel Teixeira) aceita um suco feito por ela depois que havia revelado que sabia que Thelma matou uma mulher (a última cena da primeira fase na novela). O suco, claro, estava envenenado e Jane também é assassinada por Thelma. Pessoalmente, considerei como ponto mais frágil desta retomada o “franciscanismo” de Betina (Isis Valverde), agora milionária, que resolve retornar ao hospital em que trabalhava para atuar na linha de frente do COVID. Sua decisão, sem qualquer ponderamento em relação aos riscos que corre, parece destoar em uma novela que tem como trunfo justamente fugir do maniqueísmo, de personagens inequivocadamente bons ou maus.
E é exatamente o contrário do que ocorre com Thelma, que, na busca insana de esconder a identidade da mãe real de seu filho Danilo (Chay Suede), se torna uma assassina em série. Por mais que Thelma se configure como a vilã dessa segunda fase, o trabalho feito tanto pelo texto quanto pela atuação de Adriana Esteves é simplesmente estupendo. Entregue à loucura, Thelma explicita os seus conflitos interiores no corpo, numa performance incrível. Cada cena em que ela aparece sugere ter saído do clássico Crime e Castigo, de Dostoiévski, em que um homem comete dois assassinatos e lida, ao longo de um livro inteiro, com a loucura e a paranoia de ter seu segredo descoberto.
E não há como deixar de destacar a importância na trama de Lurdes (Regina Casé), uma personagem icônica que deverá entrar para os cânones das telenovelas brasileiras. Parece que o papel de Lurdes como uma mãe do Brasil se intensifica ainda mais com a crise pandêmica que vivemos – pois nós, espectadores, também sentimos falta de uma força maior que nos embale e nos diga coisas que nos conforte.
Os momentos em que ela aparece são sempre singulares, mas destaco, especialmente, a sensibilidade dos diálogos entre Lurdes, Lidia (Malu Galli) e Magno (Juliano Cazarré). A ricaça Lidia – uma das personagens mais tristes de Amor de mãe – começa a se envolver com Magno, filho de Lurdes, que avisa o filho sobre o “passado” da patroa (em especial, que teve um namorado garoto de programa que sustentou por um tempo). Magno resolve se afastar de Lidia e, em uma cena estupenda, Lidia, mesmo destruída, esclarece que não deve explicações a ele e que ninguém pode julgá-la.
Em seguida, a reconexão entre Lurdes (que reconhece o erro de tê-la julgado, mas lembra que é mãe) e Lidia ocorre em uma cena terna digna do texto memorável em tantos aspectos como é o de Amor de mãe. Em certo diálogo, Lurdes diz à patroa: “eu sei que ele é tudo o que a senhora precisa, só não sei se a senhora é tudo o que ele precisa”. Ao se demitir do emprego pois não poderia ser funcionária e sogra de Lidia ao mesmo tempo, Lurdes diz: “não se preocupe, pobre quando não tem emprego, inventa”.
É claro que, por conta das reviravoltas pandêmicas do destino, sempre há aquela pergunta no ar: o que seria de Amor de mãe se ela não tivesse sido interrompida? A julgar pela primeira semana, a novela promete cumprir a expectativa dos cativos espectadores e tem tudo para se tornar um marco que direcionará os rumos da dramaturgia televisiva. O único porém dessa semana, contudo, é o excesso de merchandising agressivo dentro da novela – é difícil imaginar que não haveria outras soluções possível para não “contaminar” a trama com o comercial.