Estamos em 2019 e boa parte do mundo, senão o mundo todo, ainda nega o racismo. Entende que ele existe, mas acredita que o crime só ocorre quando alguém ofende uma pessoa negra diretamente. Essa ação, essa ofensa, precisa ser apresentada sem nenhuma nuance, nenhuma complexidade. Tem de ser clara e óbvia. Só é racismo quando eu, no meu entendimento e na minha verdade, entendo que determinado ato foi racista. A passageira de um ônibus que xingou o moço de macaco foi racista. A modelo negra chutada por um homem branco em um metrô de Londres sofreu racismo. Não há muito espaço ou entendimento para o racismo estrutural e o racismo institucional, aquele crime velado que aniquila vidas e oportunidades.
Esse parece ser o mote de Olhos que Condenam, minissérie em quatro episódios feita pela Netflix. Baseada em uma história dolorosamente real, a produção expõe um dos erros mais absurdos do sistema judiciário norte-americano. Numa noite de abril de 1989, em Nova York, uma executiva bancária sai para correr nos arredores do Central Park e acaba sendo espancada e estuprada. Naquela mesma noite, um grupo de jovens negros do bairro Harlem se reúne no parque, como qualquer outro grupo adolescente. Após denúncias de que alguns desses jovens estavam perturbando os cidadãos, não demora muito para a polícia aparecer e levar vários deles presos.
Olhos que Condenam é uma história revoltante, mas nada incomum se olharmos quantos casos parecidos já vimos por aí.
Logo a polícia descobre a mulher desacordada dentro do parque. Durante uma breve investigação, cinco daqueles garotos do parque se tornam suspeitos. Todos menores de idade, eles são interrogados durante horas. Boa parte dessas horas sem a presença dos pais ou advogados. Assustados, com fome e sem a menor ideia do que estava acontecendo, eles acabam confessando o crime apenas para poder sair daquela situação. Depois negam, mas ninguém acredita. Todos foram presos. Passaram entre 7 e 13 anos na prisão, até que em 2002 um estuprador em série confessou o crime. O DNA era compatível. Eles eram inocentes.
Escrita e dirigida por Ava DuVernay (Selma), Olhos que Condenam é uma história revoltante, mas nada incomum se olharmos quantos casos parecidos já vimos por aí. “Erros”, como este, são comuns não somente no sistema judiciário dos EUA, mas no de boa parte dos países, sempre embasados por julgamentos que correm ao pé da letra da lei, mas que ignoram fatos relevantes a favor da narrativa. Neste caso, a briga não era por justiça, mas por quem ganharia um caso que estava sendo cobrado socialmente e midiaticamente. O olhar de DuVernay, portanto, foca no lado humano daqueles cinco meninos injustiçados. Se durante o julgamento eles foram narrados e montados como membros de gangues e delinquentes juvenis, aqui eles são representados como crianças injustiçadas e assustadas, nada além do que de fato eram na época.
Brilhantemente, DuVernay mostra de forma lenta e dolorosa como o sistema prisional canaliza e privilegia jovens negros e latinos. No caso da mulher agredida no parque, promotores e júris precisavam fazer a maioria branca se sentir confortável e segura, além de provar que os americanos não aceitariam aquele tipo de violência. Assim, seria impossível que aquele julgamento atestasse que os Estados Unidos como instituição havia cometido um erro. Uma mulher branca foi atacada e ela só poderia ter sido atacada por pessoas negras. Se não foram eles, ora, foram outros negros. Não importa. A justiça é descartada para que a narrativa comum faça sentido.
Essa “instituição” é representada por Linda Fairstein, aqui interpretada por Felicity Huffman, irritantemente brilhante eu seu papel. Junto com a promotora Elizabeth Lederer (Vera Farmiga), ela vai minando qualquer chance daqueles jovens se defenderem, sempre com convicção, tranquilidade e respeito. Não surpreende que a Fairstein da vida real tenha alcançado notoriedade, sendo vista como uma heroína, escrevendo vários romances policiais de sucesso. Depois da minissérie, porém, ela vem enfrentando problemas.
Todos os atores estão estupendos em seus personagens, mas quem chama atenção mesmo é Jharrel Jerome, que interpreta Korey Wise. Enquanto os três primeiros episódios mostram as investigações, o julgamento e os quatro garotos, agora adultos, tendo que lidar com uma vida pós-prisão, é o último episódio que nos deixa em prantos ao mostrar os anos de Korey, o quinto jovem, em diversas penitenciárias. E é horrível presenciar uma criança de 16 anos tendo que suportar torturas físicas e psicológicas, sempre firme em suas convicções de inocência e sem nunca ter ganhado o benefício da dúvida. As cenas são fortes e servem para dar um soco em cada um de nós. O episódio é claustrofóbico não somente porque se passa numa prisão, mas porque percebemos que não houve nenhum tipo de justiça para Korey, nenhuma manifestação, nenhum pedido de ajuda.
Mas mesmo que todos assistam a Olhos que Condenam, mesmo que exibiam a minissérie em escolas, mesmo que a produção ganhe destaque mundial em horário nobre, mesmo que a série seja um simulacro de uma realidade bem mais cruel, ainda assim as pessoa irão relativizar. Algumas pessoas, de fato, acreditam e apoiam que é melhor que muitas pessoas inocentes sejam condenadas para não arriscar que uma culpada fique livre. Algumas pessoas, de fato, acreditam que se a Justiça e o sistema funcionam para ela, funcionam para todos. Algumas pessoas vão acreditar que aqueles jovens, no fundo, cometeram algum tipo de crime. Algumas pessoas vão achar que a minissérie quer passar a mensagem de que todos os negros são injustiçados e coitadinhos. Algumas pessoas acreditam que tudo agora é racismo.
Além de espectadores, acabamos nos sentindo como cúmplices de uma injustiça. Ao ver aquele tribunal do júri representado na série, de que lado nós estaríamos? Hoje, sem saber o final da história, qual seria nossa postura? No título original, Olhos que Condenam se chama When They See Us (Quando eles nos veem), que me parece muito mais pertinente. Aqueles garotos fazendo bagunça no parque poderiam ser quaisquer outros garotos brancos que vemos por aí fazendo o mesmo tipo de bagunça, estando apenas no lugar errado e na hora errada. A diferença é como nós os vemos.