No ultimo sábado (16), a televisão brasileira assistiu a um episódio importante de sua história: pela primeira vez, o Jornal Nacional, o telejornal mais visto no país, foi capitaneado por uma apresentadora negra. O pioneirismo coube a Maria Júlia Coutinho, que trabalha como repórter na Rede Globo desde 2007, e desde 2013 passou a apresentar a previsão no tempo no mesmo telejornal, tornando-se muito conhecida do público.
O fato foi celebrado amplamente nas redes sociais, numa comemoração coletiva sobre o marco que significa esta conquista. Não é a primeira vez que jornalistas negros tornam-se apresentadores na Globo – Gloria Maria apresentou por anos o Fantástico, Zileide Silva apresenta eventualmente o Jornal Hoje e Heraldo Pereira também já ancorou o mesmo Jornal Nacional. A novidade está em uma mulher negra estar à frente deste importantíssimo noticiário, que este ano completa sua quinta década de existência, e que historicamente foi apresentado por homens (como a dupla Cid Moreira e Sergio Chapelin e, desde 1996, por William Bonner, que também é editor-chefe).
A princípio, a reflexão que me veio à cabeça com a notícia sobre Maju Coutinho foi: por que é tão importante para tantos tê-la na bancada do Jornal Nacional apresentando as notícias, e não concretizando essas mesmas notícias, como repórter ou produtora? Por que tantos se sentem mais representados quando uma pessoa negra está, por exemplo, na frente da previsão do tempo, e não na “zona de guerra” que é o mundo em que as notícias eclodem? Isto sempre me causou certo estranhamento pois diz respeito ao quesito negativo de “celebridade” que a TV cria, mesmo no que se refere ao jornalismo. (Um comentário apenas para ilustrar esse ponto: ao longo de minha carreira enquanto docente, encontrei muito mais alunos de Jornalismo que se espelhavam em gente como Patrícia Poeta, a qual conhecemos muito mais da área do entretenimento, do que em repórteres, que, muitas vezes, arriscam-se em seu ofício diário de garimpo das notícias).

Mas é claro que há um certo cinismo nesta reflexão, pois há sim um fato aqui de absoluta relevância, que diz menos respeito ao que Maju Coutinho faz, enquanto apresentadora, mas sim o que ela representa: um profissional e, além disso, uma profissional mulher, numa posição de poder, outrora reservada apenas a homens brancos. Como ela menciona em entrevista ao jornalista Maurício Stycer, o fato de que ela está lá, na bancada do Jornal Nacional, é notícia porque é simbólico. Mas é um símbolo do que, exatamente? De algo passa a existir a partir de sua presença: que outras tantas pessoas negras possam igualmente desempenhar funções de liderança, de visibilidade, assumindo papéis dos quais foram apartados historicamente.
A verdadeira notícia aqui é que nunca uma mulher negra havia apresentado o maior telejornal do país, e que apenas um homem negro havia exercido essa função, e que isto nunca havia nos comovido coletivamente.
Há outro comentário nesta entrevista concedida por Maju que considero muito pertinente: infelizmente, ainda é notícia que uma negra esteja à frente do maior telejornal do país, e só isso, por si mesmo, é um signo suficiente da importância do feito. O fato de que estejamos celebrando isso apenas endossa o racismo estrutural, invisível, que vigora neste país. Deste modo, a relevância de tê-la em frente diz respeito à representatividade que traz: a possibilidade de que um profissional negro esteja na mídia, de modo natural, a ponto de que algum dia isso pare de ser notado por nós. Como diz também Maju: que em breve sejam tantas as jornalistas negras na televisão que mal consigamos lembrar de todas elas. Ou seja, há sim muito o que ser comemorado aqui.
Relembro aqui que, em um dos primeiros textos publicados nesta coluna da Escotilha, eu buscava analisar justamente a popularidade de Maju Coutinho e o quanto ela revelava uma estratégia vigente das emissoras: o de tornar seus jornalistas quase como amigos dos espectadores, uma perspectiva de intimidade e proximidade com a audiência (não por acaso, conhecemos a jornalista por um apelido, como se ela fosse nossa amiga). Esta ideia de “humanização” destes profissionais – que, conforme já dizia em 2015, oferecem a nós um produto jornalístico, e não a amizade – pode ser usado com fins táticos pelos canais, como subterfúgio para explorar, por exemplo, pautas sensacionalistas, matérias irrelevantes, espetacularização. Um sintoma dessa distorção: observe quantos são os apresentadores de programas populares que se elegem para cargos públicos, pois as pessoas se sentem mais próximos deles do que dos chamados políticos profissionais.
Em resumo, é sempre importante lembrar que jornalistas não são celebridades, não precisam de amigos, ou de torcida; precisam de espaço e condições para exercer dignamente o seu trabalho e ofertar à população aquilo que realmente é a sua missão, que é uma informação de qualidade. Com todos os méritos para estar onde está, torço para que Maria Júlia Coutinho siga exercendo um bom trabalho, agora como apresentadora – e que sua popularidade, que tende a ser potencializada, seja sempre capitalizada para que o jornalismo da emissora esteja sempre em processo de melhoria.
Por fim, destaco: a verdadeira notícia aqui é que nunca uma mulher negra havia apresentado o maior telejornal do país, e que apenas um homem negro havia exercido essa função, e que isto nunca havia nos comovido coletivamente. A não-existência dessa notícia por tantos anos é o que deveria chamar a nossa atenção.