Há um fato que não pode ser negado: Julia Louis-Dreyfus é a rainha da comédia. Em um gênero em que homens têm chances muito maiores de suceder, Julia conseguiu ocupar um espaço no humor em que ela parece insubstituível. Seu talento para fazer rir tem um tanto de inexplicável, mas é possível delinear o seu estilo de comédia a partir de sua capacidade de construir personagens femininas adoráveis, profundamente neuróticas – e, claro, detestáveis em vários aspectos.
Julia Louis-Dreyfus começou sua carreira quando entrou na faculdade: ela cursou artes dramáticas na Northwestern University, em Illinois. Lá, ela se envolveu com um grupo de teatro chamado Pratical Threatre Co., liderada pelo ator Brad Hall, com quem se casaria em 1987 (e permanecem juntos até hoje, totalizando já 34 anos de casamento). O grupo se especializou em improvisação e foi criando uma reputação em Chicago – a ponto de todos os quatro membros acabarem sendo contratados para o Saturday Night Live, da NBC, o mais tradicional programa televisivo de humor dos Estados Unidos.
Julia permaneceria no SNL até 1985, quando outra grande oportunidade surgiria para ela. Larry David, seu ex-colega no programa, a convidou em 1987 para fazer um teste para um novo seriado que estava desenvolvendo com o comediante Jerry Seinfeld. E o resto é história: Julia-Louis Dreyfus encarnaria Elaine Benes, a icônica ex-namorada do protagonista de Seinfeld. Ela se ocuparia do papel entre 1990 e 1998, e Seinfeld, como quase todo mundo sabe, se tornou uma espécie de paradigma máximo da comédia de humor na televisão – parece difícil que surja uma nova atração para superar a inteligência e, claro, a graça deste clássico.
O sucesso, então, chegou à sua porta. E o problema de atores que desenvolvem papéis tão marcantes é que dificilmente conseguem se desvencilhar deles depois. Veja, por exemplo, o caso de seu colega Michael Richards, que parece eternamente ligado ao Cosmo Kramer que interpretou nos oito anos de Seinfeld.
Pois o talento de Julia Louis-Dreyfus a tornou uma exceção. Ela conseguiu criar nada menos que 3 personagens inesquecíveis dentro da comédia. Entre 2006 e 2010, ela viveu Christine Campbell, a mãe solo de The new adventures of Old Christine, da CBS, e, entre 2012 e 2019, foi Selina Meyers, a vice-presidente (e presidente!) dos Estados Unidos, em Veep, da HBO. Por estes 3 papeis, venceu 10 vezes o Emmy, uma vez o Globo de Ouro, e 9 vezes o Screen Actors Guild.
Como uma atriz conseguiu desenvolver e sustentar 3 personagens tão icônicos? Talvez este seja um mistério cuja resposta nunca saberemos. Mas vejamos um pouco sobre estas 3 mulheres inesquecíveis.
Elaine Benes, em ‘Seinfeld’ (1990-1998)

Jerry Seinfeld, protagonista de Seinfeld – obviamente, alter ego do próprio Seinfeld e de seu parceiro Larry David – é um homem autocentrado, na casa dos 30 e poucos anos, e cuja vida gira em torno de sua casa e de seus amigos mais próximos. Elaine Benes é a ex-namorada de quem ele nunca se desconectou. Ela frequenta sua casa, é uma espécie de “grilo falante” contra o seu narcisismo e, eventualmente, quando não surge opção melhor, fazem sexo.
É possível delinear o seu estilo de comédia a partir de sua capacidade de construir personagens femininas adoráveis, profundamente neuróticas – e, claro, detestáveis em vários aspectos.
Elaine Benes se tornou, desde a década em que a série foi originalmente exibida até hoje, uma das personagens femininas mais famosas na história da televisão. Com profissão indefinida, ela passa boa parte da série mudando de emprego (os seus trabalhos que rendem episódios mais engraçados provavelmente são como assistente de um dono excêntrico de uma loja de roupas e em uma editora).
A iconicidade da personagem se deve a vários fatores. Por um lado, Elaine tem alguma postura meio andrógina, pois ela é “um dos caras”; por outro lado, ela consegue ser sexy e provocante, conquistando diversos homens durante as temporadas (Seinfeld e todos os seus amigos parecem avessos a compromissos mais sérios).
Ao longo dos anos, Elaine também foi se tornando uma espécie de símbolo feminista na TV por conta de suas posturas. Ela é independente, trabalhadora e tem posturas antirromânticas (como no episódio em que briga com um crush porque ela não se comovia assistindo a O Paciente Inglês). A personagem também posiciona-se a favor do direito ao aborto (chega a terminar com um namorado que é contra), discute seu método anticoncepcional e participa de um concurso de masturbação com 3 amigos homens. Tudo isto, claro, adornado pelo humor um tanto físico de Julia Louis-Dreyfus – lembre-se, por exemplo, da dancinha ridícula de Elaine e você saberá do que estou falando.
Christine Campbell em ‘The New Adventures of Old Christine’ (2006-2010)

Em The New Adventures of Old Christine, Julia desenvolveu ainda mais as suas habilidades neste humor baseado nas reações corpóreas e nas expressões faciais exageradas – provavelmente, herança de seu trabalho no teatro de improviso. Aqui, ela é uma mulher divorciada, dona de uma academia para mulheres, que convive com o ex-marido, a melhor amiga e o irmão, que a ajudam a criar seu filho Ritchie. Seu ex-marido está prestes a casar com outra mulher, bem mais nova que ela, mas que também se chama Christine – daí surge o nome da série.
A grande graça de Christine é que ela parece totalmente equivocada em tudo. Sua percepção de si mesmo é errada, e quase todas as suas características parecem negativas: ela é egocêntrica, carente, não gosta de trabalhar, bebe além da conta, não consegue desenvolver novos relacionamentos amorosos, tenta se passar por intelectual às vezes mas é avessa a qualquer tipo de estudo. Como mãe, é absolutamente sufocante ao pequeno Ritchie. A identificação com todas as mulheres cansadas ao redor do mundo é praticamente inevitável.
Profundamente neurótica, Christine reflete a sombra escondida em todas nós, mas também carrega uma mensagem sobre não levar nada muito a sério. E, claro, ela se recusa a fazer terapia, embora todos os sinais possíveis indiquem que ela precisa se tratar.
Selina Meyer em ‘Veep’ (2012-2019)

Na escalada das personagens detestáveis interpretadas por ela, Julia Louis-Dreyfus chega ao ápice ao viver Selina Meyer, uma política que, se não é exatamente mal intencionada, é pelo menos sempre despreparada. Mas esse não é um “privilégio” de Selina: todos os demais personagens de Veep, que tematiza a vida política na Casa Branca, são horrorosos.
Julia definiu Veep como “uma comédia extrema para tempos extremos”. Com isso, ela chama a atenção para o fato de que a série faz um retrato terrível dos políticos americanos. Como vice-presidente (cargo que ela ocupa sem mérito algum), ela toma decisões que privilegiam muito mais seus benefícios pessoais e sua permanência do poder do que qualquer melhoria na vida social. Além disso, ela se cerca de assessores (que também configuram como grandes estrelas no seriado) que ou só servem para puxar o seu saco (como o secretário pessoal Gary, vivido por Tom Hale, de Arrested Development), ou têm agendas de interesses particulares.
Selina é pouco inteligente, atrapalhada, homofóbica (o tratamento que ela destina à filha gay beira o absurdo), racista e iludida quanto às intenções das pessoas (outro mote engraçadíssimo da série é o envolvimento dela com o ex-marido truqueiro e com um senador vivido por Hugh Laurie, de House). Ainda assim, é claro que ela é e estrela absoluta da série e consegue nos fazer amá-la. Mais um trunfo na carreira da rainha do humor.
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: pix@escotilha.com.br. Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.