Um dos parâmetros mais problematizados do jornalismo nos últimos anos é o preceito histórico da imparcialidade. Em resumo, ele prega que jornalismo (e os jornalistas) precisa ser isento. No jargão da área, precisa “ouvir os dois lados” – uma frase que já carrega o engano de resumir a realidade em dois lados opostos.
As décadas passaram, as mídias se complexificaram e tudo isto precisou ser repensado. Hoje, há uma urgência em se enfrentar esta questão: se algum setor ouvido por uma matéria jornalística defende algo absurdo ou criminoso, cabe ao jornalista desmentir o que está sendo dito? Ou fazer isto seria ferir a ideia da imparcialidade construída por décadas?
Trago esta contextualização para falar do interessantíssimo episódio do programa Profissão Repórter – sem dúvida, um dos grandes espaços do jornalismo investigativo na TV aberta. A equipe coordenada por Caco Barcellos escolheu como pauta acompanhar as últimas semanas antes das eleições em três cidades: a que mais teve votos para Bolsonaro no primeiro turno, a que mais teve para Lula, e uma que teve exatamente os mesmos votos para Lula e Bolsonaro.
Sabe-se que a pauta jornalística é, possivelmente, o cérebro do jornalismo: é a partir dela que tudo se desdobra. Ao definir este ângulo da realidade para observar, Profissão Repórter faz uma escolha acertada para tentar, a partir de suas estratégias, trazer profundidade acerca de algo que está acontecendo no Brasil: uma cisão entre pessoas que se viram representadas em um candidato de esquerda e em outro de extrema direita.
‘Profissão Repórter’ mostrou dois Brasil dentro de uma eleição
No episódio de Profissão Repórter, três equipes se dividiram entre Indaial, em Santa Catarina (que teve mais votos bolsonaristas), Ouricuri, em Pernambuco (com mais votos para Lula) e Coronel Sapucaia, em Mato Grosso do Sul (onde houve empate). Durante os minutos seguintes, há uma espécie de investigação antropológica sobre qual é o cenário estabelecido nestas cidades que pode ajudar a explicar como elas se associam às facetas ideológicas associadas a um ou outro candidato.
Sabe-se que a pauta jornalística é, possivelmente, o cérebro do jornalismo: é a partir dela que tudo se desdobra.
O que se vê, em Santa Catarina, é uma família de imigrantes alemães vindos para o Brasil para fugir da Segunda Guerra Mundial, representando uma realidade da classe média. Todos eles se mostram moderados no apoio à “extrema direita” (expressão usada textualmente por um dos entrevistados). Em comum, eles apontam que Bolsonaro seria o melhor candidato por defender a família.
No extremo oposto do país, em Pernambuco, os entrevistados têm outra cara completamente diferente. São pessoas que moram no sertão nordestino e que testemunham sobre as melhorias que os governos Lula e Dilma trouxeram para as suas vidas. Falam da construção de cisternas, de obras que levaram a luz para a cidade, de filhos que puderam estudar em universidades públicas.
É sempre relevante notar a estratégia usada pelo Profissão Repórter, que é a sua marca autoral, de mostrar os “bastidores da notícia”, tal como fala a frase repetida por Caco Barcellos. Ao mostrar como os repórteres chegam e abordam os entrevistados, faz-se um importante trabalho pedagógico de desconstruir certas convicções, fortalecidas por interesses de alguns grupos, de pintar jornalistas como “vilões” ou simplesmente como pessoas mal intencionadas.
A técnica usada pelo programa é exibir a todo momento as interações entre jornalistas e fontes. Quando um repórter (provavelmente incrédulo) ouve uma mãe em Santa Catarina que diz que vai votar em Bolsonaro porque não quer que sua filha vá no mesmo banheiro de homens adultos, ele pergunta, de modo muito respeitoso, sobre qual seria a fonte desta informação. Ou seja, ele não acusa uma mentira, mas sim dá o “palco” para que aquela pessoa desenvolva o raciocínio. Fica subentendido que o que ela fala é proveniente de notícias falsas.
A compra de votos em Mato Grosso do Sul
Mas este momento da reportagem é uma exceção, pois o programa assume a prerrogativa (que deveria ser a mola propulsora de todo jornalismo profissional) de denunciar o inaceitável. E um destes momentos, que é o que mais repercutiu nas redes, é uma ação para compra de votos em Coronel Sapucaia.
Enquanto estava lá, Caco Barcellos provavelmente recebeu a pista de que estariam ocorrendo reuniões, promovidas pela prefeitura, com o intuito de “catequizar” eleitores pobres a votar em Bolsonaro pelo risco de perder o benefício do Auxílio Brasil.
Caco Barcellos, repórter calejado em anos deste tipo de trabalho (vale lembrar, por exemplo, que ele ficou anos investigando os assassinatos da Rota 66), adentra-se na tal reunião e tenta conversar tanto com os presentes, quanto com os funcionários da prefeitura que estavam organizando aquele encontro. Em frente à câmera da TV Globo, ninguém quer falar. Um homem chega a ameaçar Barcellos. Mais tarde, ele recebe uma ligação dizendo que permanecer na cidade será por sua conta e risco.
A equipe segue procurando alguém que fale alguma coisa sobre o que foi dito na reunião. Por fim, encontra uma jovem que declara que ali havia um esforço de coagir as pessoas a votarem em Bolsonaro, sob a ameaça de que nenhum benefício chegaria mais à cidade em uma eventual vitória de Lula.
Uma mulher corajosíssima, sem dúvida, e cujo depoimento me fez pensar sobre o quanto ela estaria segura na cidade depois da reportagem ir ao ar na Globo. Fazendo jus à proposta jornalística do Profissão Repórter, que compartilha com o espectador as “entranhas” do trabalho, seria interessante que fosse ao ar como se deu a discussão para decidir que aquele depoimento seria veiculado.
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