A televisão, atualmente, atravessa um período de transição. Estamos vivendo uma era em que o poder dos chamados influenciadores digitais parece assombrar as outras mídias tidas como tradicionais. Não por acaso, as emissoras de TV têm investido cada vez mais nesses nomes vindos da internet – o elenco de boa parte dos reality shows, vale lembrar, tem vindo dessa espécie de universo paralelo.
Mas o que talvez ainda se entenda pouco é que a TV está desbravando territórios novos. Toda vez que aposta nesses nomes de nicho, está arriscando especialmente num aspecto: na ideia de que alguém que gera um fandom (nome dado àquele conjunto de fãs mais fervorosos, que defendem e praticamente vivem parte de suas vidas para um ídolo) funcionará bem na televisão. Pensar assim, de alguma forma, é ignorar que a TV, por si mesma, constitui seu próprio universo particular.
Toda vez que aposta nesses nomes de nicho, está arriscando especialmente num aspecto: na ideia de que alguém que gera um fandom funcionará bem na televisão.
Tudo isso me vem à mente quando assisto ao programa Casa Kalimann, que estreou na plataforma Globoplay. O programa pretende ser uma espécie de talk show engraçado apresentado por Rafa Kalimann, um dos nomes saídos do programa Big Brother Brasil 20, em 2020.
Rafa já entrou no reality show enquanto celebridade digital, que trazia consigo um séquito de seguidores, e conseguiu chegar até o fim do programa sem ser cancelada – o que, convenhamos, é um grande mérito. Daria para dizer então que Rafa Kalimann foi uma das vencedoras do BBB 20, pois conseguiu faturar bem com sua participação.
Creio que é em cima desse sucesso pregresso que Casa Kalimann estreia, com bastante atraso, um ano depois do fim do BBB 20. Claramente, tenta contabilizar em cima do fandom da influencer digital, já que o programa parece completamente cifrado para quem não participa desse grupo. Digo isso porque Rafa, uma mulher de 28 anos, está, em Casa Kalimann, mergulhada num cenário que remete a programas infantis: tudo é colorido, infantil (ou infantilóide?). O talk show se fundamenta em brincadeiras feitas com convidados. Numa delas, Rafa Kalimann abre um novo cenário todo feito de doces, como se fosse uma versão meio constrangedora do chá em Alice no país das maravilhas.
Noutro momento, a apresenta clica num botão que uma janela para um mundo paralelo, em que aparentemente é permitido dizer coisas nonsense. É neste momento, me parece, que podemos tentar entender a proposta de Casa Kalimann. No primeiro episódio, ao apertar esse botão, ela fala coisas que seriam inconcebíveis dentro do espectro da sua “personagem”: frases como “sou inimiga da Manu Gavassi”, “eu casei com o Boninho”, “casei com Ana Furtado”. Para que haja algum humor nessas “piadas”, é preciso estar muito mergulhado nas lógicas desse fandom. Além disso, toda a estética do Casa Kalimann remete ao ambiente original da apresentadora. Tudo parece repleto de filtros e de momentos instagramáveis. A própria Rafa, inclusive, é uma mulher tão perfeita que parece muito pouco real.
Muito se falou da falta de carisma de Rafa Kalimann no programa (o que, mais uma vez, deve ser uma característica atribuída a ela pelo fandom). Mas no episódio de estreia vale a pena destacar o visível constrangimento do convidado, Rafael Portugal – ele mesmo um comediante vindo da internet, já que se tornou conhecido pelos esquetes de humor em canais de YouTube, entre eles o Porta dos Fundos. Mas já que a marca dele (e do canal) é justamente o deboche, o “desencaixe” dele em Casa Kalimann acaba se tornando parte da graça – como se estivéssemos vendo, talvez, um vídeo irônico do Porta dos Fundos.
Algum leitor poderia talvez dizer: mas se o programa Casa Kalimann está hospedado na plataforma de streaming da Globo, teoricamente ainda um espaço de nicho, não está no lugar certo para esse tipo de atração? Pode até ser, embora pense que a viabilidade do programa se comprovará a médio e longo prazo. A julgar pelas reações da internet a esse primeiro episódio, dá pra dizer, como dizem os jovens, que Casa Kalimann é muito cringe (ou embaraçoso, no bom português).