Ouvir o jornalista e escritor Ruy Castro em qualquer evento em que ele seja convidado é sempre a chance de assistir a uma aula. Todos nós, sortudos que já tivemos esta oportunidade, sabemos o quão obstinado ele consegue ser em seus projetos. Para escrever Estrela Solitária, polêmica biografia do jogador Garrincha, Castro chegou a produzir uma espécie de mapa de todos os jogos – com locais, rivais e resultados – em que o “Mané” esteve. A razão de tamanha meticulosidade, ele esclarece, seria ter absoluto controle sobre toda a história de seu biografado, trazendo precisão aos dados revelados no livro. A persistência e o rigor, afinal, são marcas de toda a sua obra, e não apenas desta.
Pois não por acaso Ruy Castro é o personagem do primeiro episódio da série Compulsão, do canal GNT. Com direção do cineasta João Jardim (responsável por filmes como Lixo Extraordinário, Amor? e o recente Getúlio), trata-se de um programa bastante interessante, e que se situa entre a subjetividade do documentário e o certo didatismo da televisão. Como o próprio nome sugere, Compulsão irá propor uma abordagem original aos diversos tipos de distúrbios compulsivos, como o vício do álcool, em crack, em jogos e a anorexia. Ruy Castro é convidado para tratar de seu passado como alcoólatra, contando às câmeras como antes de focar incansavelmente em seus projetos, direcionava sua compulsão a outros vícios, que eram associados ao fazer jornalístico.
O desafio de Compulsão é razoavelmente complexo, e Jardim resolve enfrentá-lo pela via da franqueza e (por que não?) por um certo humor. Por isto, a presença de Ruy Castro no episódio de estreia se torna sintomática, pois ele consegue trazer a sua muito conhecida sagacidade, sua presença de espírito e algo da sedução da malandragem carioca para trazer leveza a um tema que é, por essência, dramático.
Ruy não se furta de abordar com graça o seu período “fundo do poço” e de tecer mesmo algumas tiradas típicas do grande cronista que é. Em certo momento, pontua assim a sua vida de alcoólatra que acredita que alcoólatra é sempre o outro: “Um dia você toma um drinque, no dia seguinte o drinque toma um drinque, no outro o drinque toma você”.
A opção pela abordagem da leveza ajuda a desconstruir o mito do artista-gênio e, mais que isso, a desmantelar a ideia de que só conseguimos ‘dar a real’ sobre os problemas do mundo a partir de uma narrativa carregada e dramática.
Ou seja, a série triunfa justamente ao escapar do olhar necessariamente sensacionalista – no sentido de buscar a todo custo causar emoções rápidas no espectador – e trabalha na sutileza, no tom de quem tem a rara sabedoria de rir de si mesmo. Veja bem, os fatos narrados por Ruy (como quando se deu conta que realmente tinha problemas, aos “45 do segundo tempo”, e da maior dificuldade enfrentada pela superação do vício, que foi reconquistar as próprias filhas) já são suficientemente trágicos, independentemente do tom colocado por aquele que o narra, ou pela própria edição de quem produz aquele discurso.
Ainda que erre a mão em alguns momentos – como a inclusão forçada de “Cálice” na trilha, claramente descontextualizada, apenas para reverberar os versos “esse pileque homérico no mundo/ de que adianta ter boa vontade/ mesmo calado o peito, resta a cuca dos bêbados do centro da cidade” – as escolhas feitas por João Jardim prezam a simplicidade, o minimalismo.
Mas a grande sacada deste primeiro episódio de Compulsão, por fim, está em conseguir observar a ótica do problema para além dele mesmo, identificando de que forma os comportamentos compulsivos se conectam com outros discursos legitimados socialmente. Uma das abordagens feitas por Ruy Castro e pelos demais entrevistados visa justamente apontar como os excessos costumam ser atrelados à criação artística e à genialidade. O próprio Ruy lembra que todos os escritores em que se inspirava eram bebuns e, consequentemente, era bastante esperado que ele, enquanto grande jornalista, também fosse. Sua ex-namorada Claudia Matarazzo relembra isto em sua fala: o quanto os erros de Ruy Castro eram tolerados em seus locais de trabalho por ele ser quem era.
A opção pela abordagem da leveza ajuda a desconstruir o mito do artista-gênio (talvez não por acaso Ruy Castro tenha realmente deslanchado como escritor após largar bebidas e drogas) e, mais que isso, a desmantelar a ideia de que só conseguimos “dar a real” sobre os problemas do mundo a partir de uma narrativa carregada e dramática. Agora é de se esperar que demais episódios sigam na mesma linha.
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