Há oito anos, a Band lançou em sua grade a versão brasileira de Kitchen Nightmares, reality show de temática culinária em que o chef Gordon Ramsey vai até restaurantes que estão penando para sobreviver para dar uma consultoria especializada no intuito de salvá-los da falência. Nascia então o Pesadelo na Cozinha, uma espécie de spin-off do MasterChef Brasil, uma vez que é capitaneado por um de seus jurados, o francês Érick Jacquin.
Ao escolher Jacquin para protagonizar o novo programa, havia a intenção de estender ao produto toda a moralidade vinda do reality show original – a de supostamente vender ao espectador a ideia de que o mundo da cozinha carrega uma pedagogia sobre a vida, ao menos sobre como ela deveria ser. E essa visão poderia ser traduzida com algumas similaridades com os princípios do universo coach: a de que não há conquista sem sacrifício e sofrimento, e que é preciso, ao mesmo tempo, obedecer humildemente a uma hierarquia e tentar ser mais forte do que ela.
No começo de Pesadelo na Cozinha, um texto publicado nesta mesma coluna já sugeriu que o programa não falava sobre comida, mas sobre poder. Neste show, a persona algo fofinha e caricata do francês Jacquin abria espaço para um coach abusivo, supostamente cheio de conhecimentos, mas que só conseguia se impor pelo meio da força simbólica: deixando claro para os donos dos restaurantes participantes de que ele sabia mais, e que, aos demais, só cabia baixar as orelhas e ouvir.
Oito anos se passaram desde 2017, e Pesadelo na Cozinha chegou à sua quarta temporada, com o perdão do trocadilho, bem temperado pelas experiências anteriores. Exibido na Band e no serviço de streaming Max, o programa entrega um Jacquin finalmente transfigurado na pior faceta possível que poderia ter.
Se sua supostamente ranzinzice já pareceu até simpática em MasterChef Brasil (mesmo todos sabendo que se tratava mais de uma performance do que qualquer outra coisa), nos novos episódios, o programa adquiriu anacronismo ao retratar um tipo de relação trabalhista que, supomos, já não encontra casa em lugar algum.
‘Pesadelo na Cozinha’ e os abusos nas relações de trabalho
O formato, que é o mesmo desde a primeira temporada, segue inalterado. É sempre assim: Jacquin chega a um restaurante com problemas. Chega no salão e é servido com alguns pratos do cardápio, que estão ruins. Em seguida, ele conhece o staff, que presta um serviço incompetente e é tratado pelo chef visitante das formas mais odiosas possíveis – o que inclui gritos, palavrões e humilhações em público.
É tudo previsível, o que inclui as broncas que Érick Jacquin dá nos colaboradores. A cada restaurante que ele visita, evidencia que nunca viu um estabelecimento tão sujo ou desorganizado – o pior é sempre o próximo.
Depois de passar por todo esse périplo, no fim, o restaurante sempre é resgatado por Jacquin aos trancos e barrancos. Isso acontece também por meio da inclusão da equipe em uma dinâmica de grupo de qualidade duvidosa – por exemplo, todos são colocados em um labirinto e precisam sair juntos, ou devem remar em um rio para aprender sobre união – que, magicamente, muda tudo.
A quarta temporada mostra que, por ser tão engessado, o formato já não se sustenta de pé. É tudo previsível, o que inclui as broncas que Érick Jacquin dá nos colaboradores. A cada restaurante que ele visita, evidencia que nunca viu um estabelecimento tão sujo ou desorganizado – o pior é sempre o próximo. E, para exacerbar o cansaço, os episódios têm nada menos que 90 minutos, ou seja, o tempo de um longa-metragem.
Mas o que choca nessa temporada de 2025 é que realmente a produção parece acreditar que a persona “má” de Jacquin (que fez com que o programa ficasse famoso nas primeiras temporadas e reverberasse bastante nas redes sociais) ainda se sustenta. E o pior é que o chef se tornou absurdamente abusivo, em um nível que vai muito além do tolerável.

Alguns exemplos. No episódio, em que Jacquin vai no restaurante vegetariano Alternativa, na Vila Madalena, o dono da casa é o filho da antiga proprietária, que herdou o empreendimento. Claramente inapto para o posto que ocupa, o sujeito é permanentemente humilhado por Jacquin, que chega a encher balões estampados com o seu rosto e colocá-los nas mesas do restaurante, convidando os clientes a estourá-los sempre que tivessem uma reclamação.
O episódio exibe mais uma enxurrada de xingamentos e desrespeitos caindo sobre os funcionários que, se reagem, são retratados como petulantes que nunca irão evoluir. O gerente, não aguentando mais e prestes a ir para as vias de fato, em certo momento pega a sua moto e vai embora.
Nesse estágio da história contada ali, outra funcionária aparece na tela dizendo que ele podia parecer “fraco” por não aguentar as broncas. Ao fim, a equipe é levada para fazer uma remada conjunta. Uma das cozinheiras se recusa, aparentemente, por ter alguma fobia de água, mas é convencida a superar seu medo (mais uma vez, a lógica coach – Pablo Marçal no Pico dos Marins manda lembranças).
Assim como no resto da temporada, o que vemos é um tipo de postura corporativa hoje tida como inaceitável e que, em qualquer lugar mais esclarecido, abre margem a diversos tipos de processos trabalhistas. O Jacquin engraçadinho que se escandalizava com donos de restaurantes que desligavam o freezer para economizar energia, infelizmente, se tornou apenas mais um chefe abusivo de quem todo mundo tem raiva. É uma pena.
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