Em uma provocativa reportagem intitulada “Letra Preta”, publicada na revista Piauí, a jornalista Yasmin Santos discorre sobre o seu percurso enquanto estudante de Jornalismo e as inquietações levantadas pelo fato de que sempre cruzava com poucos profissionais negros, como ela, nas redações. De forma muito contundente, em certo momento, ela crava em seu texto: “os poucos negros que compõem as fileiras do jornalismo brasileiro somem em meio ao conjunto do noticiário, que permanece embranquecido. Responder às críticas ao racismo midiático com ‘esse ou aquele negro’ ou ‘essa ou aquela cobertura’ é insuficiente e exime o jornalismo de sua responsabilidade. Esses poucos profissionais incorporados às redações são usados como uma espécie de escudo ao racismo ou, mais recentemente, como totem de diversidade. (…) Num país como o Brasil, nós temos uma imprensa que, quando lhe convém, declara-se contra o racismo”.
Até pouco tempo, essa realidade – a inexistência ou a raridade de profissionais negros em frente às câmeras de TV, enquanto repórteres ou apresentadores, ou trabalhando nas redações de jornais – era tomada como invisível. Os negros simplesmente não estavam lá, e isto parecia inquietar a pouca gente. Com o levantamento recente de discussões acerca da representatividade das minorias nas mídias, inspirou-se uma expectativa social de que os telejornais passassem a ser mais plurais. Disso decorre, por exemplo, a comemoração coletiva quando Maria Julia Coutinho assume a bancada do Jornal Nacional ou do Jornal Hoje.
Mas não se engane, pois as palavras de Yasmin Santos são precisas: se a imprensa declara-se antirracista, é também porque lhe convém. Em outros tempos, esta não era uma questão. A invisibilidade reservada aos negros (e a outras minorias que se queira pensar aqui) era tida como fato natural – eles simplesmente não estavam lá pois não galgaram tais postos, pois as chances seriam iguais para todos. A reportagem da Piauí, de modo muito didático, elucida os inconvenientes deste raciocínio que se baseia, sobretudo, na dificuldade de encarar os fatos: há toda uma rede de empecilhos sistêmicos e estruturais que impediu que as pessoas negras alcançassem postos cobiçados, como os bancos acadêmicos e os programas de televisão.
Contundente, a série da Record prestou uma homenagem justa ao dia exatamente por valorizar seus profissionais e apontar, sem forçar a barra, as dificuldades enfrentadas pelos seus funcionários – provavelmente também dentro da empresa.
A celebração do dia da consciência negra, ocorrida no dia 20 de novembro, inspirou matérias comemorativas em várias emissoras. Destaco a série de reportagens produzida pela Record, chamada “Sem vaga para o racismo”, e divulgada ao longo de toda a semana. Em cinco episódios, a série centrou cada reportagem em um tema referente à luta dos negros: “Mercado de trabalho”, “Mulher negra”, “Educação”, “Como mudar” e “Somos competentes”.
O destaque desta iniciativa, entretanto, se deve às condições de sua produção e a forma pela qual a narrativa foi concretizada. A Record reuniu 8 repórteres negros e os trouxe para discutir e protagonizar as reportagens. Em outras palavras, numa espécie de ousadia para os telejornais, sujeito e objeto se misturaram em matérias bastante elucidativas sobre a realidade dos negros do Brasil. Os repórteres foram também personagens e como que se “confundiram” com as fontes que entrevistaram.
Foi uma opção corajosa e forte. Todas as reportagens foram mediadas a partir de uma reunião de pauta em que os repórteres, vindos das diversas “praças” da Record, discutiram em torno de uma mesa sobre os tópicos que seriam tratados. Em um trabalho arrojado, muitos dados e informações eram desenhados a partir de infográficos, facilitando a visualização do público. Outro recurso bastante importante foi o destaque na edição dadas a frases fortes que eram proferidas durante a conversa. Quando discutiam sobre a fala de uma fonte que ouviu de um empregador que não se encaixava no perfil da empresa, a frase apareceu projetada na mesa que agrupava os jornalistas.
Ao longo da semana, as reportagens buscaram destacar profissionais bem-sucedidos, que foram capazes de enfrentar os incontáveis percalços do caminho, mostrando como isso ocorreu. Uma mulher, por exemplo, lembrou dos incentivos do pai para que os filhos sempre lessem muito e fizessem faculdade. Outra moça, estudante da USP, contou que pode estudar e alcançar uma vaga na universidade mais concorrida do Brasil, diferente de tantos outros negros que não tiveram essa oportunidade.
Destacar elementos positivos, no fim das contas, é mais benéfico ou prejudicial aos negros? Alguém poderia acreditar que é prejudicial, pois acaba por destacar apenas as exceções à regra – ou seja, pode dar a impressão de que os negros que “sucedem” assim o fazem por suas competências apenas, o que acaba por excluir uma grande parte da população que não chega lá. No entanto, a série da Record tem o cuidado de problematizar esta questão. Quando a estudante da USP é entrevistada, por exemplo, ela deixa bem claro que só entrou na universidade porque pode estudar sem trabalhar – uma impossibilidade a tantos outros jovens negros no país.
Contundente, a série da Record prestou uma homenagem justa ao dia exatamente por valorizar seus profissionais e apontar, sem forçar a barra, as dificuldades enfrentadas pelos seus funcionários – provavelmente também dentro da empresa. É impossível também não se comover no encontro entre entrevistadores e entrevistados, quando, em certos momentos, eles contam que já passaram pelas mesmas situações que as fontes contam.
Como diz o repórter Fagner Coelho em certo momento: “meu maior desafio foi acreditar que eu poderia de fato chegar a um cargo como esse. Eu não via na TV repórteres e apresentadores e pensava: será que eu posso chegar lá?”. Apenas com sua presença em rede nacional, estes oito repórteres passam uma importantíssima mensagem ao país.