O dia era 19 de agosto de 1981. Nesta data, ia ao ar a primeira transmissão do Sistema Brasileiro de Televisão, ou simplesmente SBT, uma emissora de televisão aberta criada quando seu dono, Silvio Santos, conseguiu uma concessão pública para poder gerenciar um canal com abrangência nacional. A nova emissora criada por Silvio – um ex-camelô que viu a televisão como uma forma perfeita de impulsionar seus negócios – assumia a concessão retirada da Rede Tupi.
Desde então, o SBT desenhou uma história que mistura altos e baixos. Para os nascidos ou crescidos nos anos 80 e 90, há a lembrança de uma época dourada, em que programas e apresentadores cravavam seus nomes na memória dos espectadores. Atrações como Programa Silvio Santos, Domingo Legal, Viva a Noite e Hebe eram eventos semanais para quem os acompanhava.
As crianças também eram contempladas, com programas como Show do Bozo, Show Maravilha e Programa Sergio Mallandro (mais recentemente, as novelas infantis do SBT, como Carrossel e Cúmplices de um resgate, se tornaram um case de sucesso à parte, e são constantemente reprisadas). No jornalismo – provavelmente a área mais frágil da emissora -, a emissora costuma ser lembrada pelo programa popularesco Aqui Agora.
Mas a época de ouro do SBT (que já auto intitulou, em slogans publicitários, como a “emissora que tem torcida” e a “TV mais feliz do Brasil”) já parece estar longe. Talvez seja, atualmente, a emissora que menos renova a sua grade: seus programas ou são antigos, ou mudam o tempo todo de nome ou horário (caso, por exemplo, do Fofocalizando/Triturando), ou são formatos comprados de grandes franquias. Esta configuração parece ser um reflexo daquilo que, internamente, se chamou de “Silvio Brincando de Televisão”. Em outras palavras, uma administração submissa à vontade do seu dono – que, não por acaso, é também a principal estrela do canal.
Nos 40 anos do canal, aos 90 anos de seu dono, esta reportagem da Escotilha se questiona: para onde vai o SBT? Para isso, conversamos com profissionais que já estudaram a emissora – Maurício Stycer, jornalista do UOL e autor do livro Topa tudo por dinheiro – as muitas faces de Sílvio Santos; João Paulo Hergesel, doutor em Comunicação, professor na Pós-Graduação em Linguagens, Mídia e Arte da PUC-Campinas, e autor dos livros A telepoética nas produções do SBT e Estilo SBT de comunicar, e Rafael Fialho, doutor em Comunicação, professor universitário e pesquisador da área de televisão.
Qual é a cara do SBT?
A televisão aberta, para quem não sabe, funciona no Brasil por um sistema de concessões cedidas pelo governo federal para que algumas empresas explorem os canais – por isso, empresários como Silvio Santos e Edir Macedo são donos das emissoras, mas não são “donos” dos canais em que elas são transmitidas à população.
Por isso, é importante ter em mente que as emissoras, juntas, desenham um “cardápio” que é ofertado gratuitamente aos brasileiros. Se algumas emissoras têm cunho mais jornalístico, outras, mais educativo, daria para arriscar qual a identidade do SBT?
Todos os entrevistados coincidem numa visão de que o SBT tem uma marca: o investimento na comunicação popular, focando sobretudo nas classes C e D. “Historicamente, o SBT surge como uma quebra da ‘higienização’ estabelecida na programação televisiva, fato que começou a ocorrer na década de 1970 e por influência da ditadura militar. Com o corte dos programas popularescos, em especial na Rede Globo, vários programas populares foram extintos. Silvio Santos, ao fundar a TVS Rio (que posteriormente evoluiu para a TVS – Canal 4 de São Paulo, dando origem ao SBT), apresenta uma tentativa de manter esse tipo de produção”, aponta João Paulo Hergesel.
Rafael Fialho (que teve o SBT como objeto de estudo desde o TCC do curso de Jornalismo até seu doutorado) investigou, na dissertação de mestrado “A TV mais feliz do Brasil: a proposta de interação do SBT com a audiência”, a relação dos SBTistas (os fãs assumidos da emissora) com o canal. A partir de pesquisas realizadas em comunidades de fãs, conseguiu pontuar as bases desta identidade: “São quatro pilares: a família, numa perspectiva conservadora (definida como pai, mãe e filhos, todos brancos, à qual se remete nas vinhetas e nos vídeos institucionais); a brasilidade (que aparece no ‘Sistema Brasileiro de Televisão’, convocando estereótipos e discursos sobre o brasileiro); afetos e sentimentos (o SBT é uma emissora que se coloca como uma pessoa, com sentimentos em relação a nós. O primeiro slogan da TV, aliás, era: ‘a primeira no coração de vocês’). O SBT não se colocava como a emissora que seria melhor tecnicamente, mas sim como a mais querida, a mais afetiva e feliz; e, por fim, o pilar mais central, que é o próprio Silvio Santos – o SBT se identifica como uma emissora com valores humanos, e o Silvio Santos seria a personificação disso”, explica Fialho.
A cara do SBT, portanto, tem a ver com o investimento nestes pilares e na proposta inovadora, que quebra com o padrão “profissional” da Globo, por exemplo. Maurício Stycer pontua: “mesmo com altos e baixos, idas e vindas, avanços e recuos, o DNA da emissora nunca se modificou. Na busca por uma grade de interesse das classes C e D, o SBT produziu um catálogo de atrações nos mais diversos gêneros, dos programas de auditório à teledramaturgia, passando pelo jornalismo. Há várias nuanças nesta história, que poderiam e mereciam ser destacadas, mas arrisco dizer que esta generalização faz justiça, na essência, ao que a emissora representa na comunicação brasileira”.
Todos os entrevistados coincidem numa visão de que o SBT tem uma marca: o investimento na comunicação popular, focando sobretudo nas classes C e D.
Hergesel explica que esse perfil se reflete na programação ofertada pela emissora: “é uma programação que não teme o grotesco e o kitsch, mas respeita o público que aprecia essas estéticas”.
Esse caráter da proximidade com o espectador também é destacado por Fialho. “O que a gente sempre gostou no SBT foi a coisa do improviso, da gambiarra, do informal, do jeitinho, do mambembe, da autenticidade, do circo. Estamos falando sempre de questões que envolvem quebrar as regras. O SBT nunca tentou ser a Globo, mas sim tentou marcar um nicho diferente, para uma diferente classe social em relação à Globo”, comenta.
O que aguarda o futuro do SBT?
Uma das características mais marcantes do SBT é o fato de ser uma emissora fundamentalmente centralizada na figura do seu dono. A trajetória da construção da emissora, baseada em boa parte da mitologia em torno do apresentador Silvio Santos, é contada de forma muito minuciosa por Maurício Stycer, na obra Topa tudo por dinheiro – as muitas faces de Silvio Santos.
Stycer credita essa característica como um diferencial da emissora. “Uma das originalidades do SBT é o fato de a emissora girar em torno da figura do seu dono na frente das câmeras. Isso tem um impacto tremendo. Pois de fato ele é, ao mesmo tempo, o esteio e o principal garoto-propaganda”, explica.
Há uns bons anos, a imprensa especula em torno de uma questão: o que será do SBT quando não tivermos mais Silvio Santos? O apresentador, que hoje tem 90 anos, parece ser insubstituível. Sobre o tema, Mauricio Stycer afirma: “tenho dificuldades em responder objetivamente por implicar numa especulação, mas compartilho da preocupação que está embutida na pergunta”.
Já João Paulo Hergesel acredita que o SBT estaria se tornando a emissora da família Abravanel. “A imagem de Silvio Santos, por toda sua história pessoal e profissional, serve para dar credibilidade ao que é colocado no ar. O SBT nasce tendo como base um indivíduo reconhecido nacionalmente por seu carisma, por sua visão estrategista e, para muitos, por sua idoneidade. Sem o Silvio e toda a simbologia contida em sua personalidade, o SBT talvez não tivesse conseguido chegar aos 40 anos”, comenta.
Para Rafael Fialho, não há SBT sem Silvio Santos – pelo menos, o SBT como o conhecemos. “Falo do SBT que confraterniza, que ri de todos, com uma perspectiva algo alienante (uma emissora que não mexe com política, por exemplo)”. Hergesel crê que um novo SBT vem sendo construído. “Hoje o SBT vem se tornando cada vez mais ‘a emissora da família Abravanel’ do que tão somente ‘a TV do Silvio Santos’. Em outras palavras, Silvio é insubstituível, como muitas outras personalidades que já se foram. O espaço que ele conquistou na televisão sempre vai ser dele, independentemente de sua presença física; no entanto, a emissora tem potencial para continuar funcionando sem ele – não à toa, ele treinou suas filhas e seu neto para se destacarem na frente das câmeras e continuarem levando o nome da família Abravanel adiante”, explica.
Vale lembrar, no entanto, que o “pilar Silvio Santos” foi abalado nos últimos anos – quando as falas politicamente incorretas do apresentador passaram a repercutir nas redes sociais. Fialho explica: “até 2011, ele era um mito inquestionável. Depois, quando começa a se destacar as declarações racistas, machistas, homofóbicas, a internet começou a ‘engoli-lo’ e cancelá-lo. Por isso, costumo dizer que a internet matou o SBT. Acho que depois que ele se for, o SBT como conhecemos não vai existir – o SBT atual, aliás, já é bem diferente do SBT do passado”.
A emissora do afeto e da nostalgia
Recentemente, a emissora passou a reprisar programas antigos de Silvio Santos – como episódios de Qual é a música? com o elenco de Casa dos artistas, de 2001. A repercussão nas redes sociais foi muito positiva. Isso significa que os espectadores preferem o SBT do passado?
Maurício Stycer não vê esse apego ao antigo como sinal de fraqueza da emissora atual. “É uma tendência – antiga, inclusive – de exploração de catálogo, atendendo a um sentimento de nostalgia do público mais velho e de curiosidade dos mais jovens. De um modo geral, as emissoras têm usado o arquivo em suas plataformas online. O SBT, talvez por ter sentido mais do que os seus concorrentes os efeitos da pandemia, está fazendo isso na própria TV aberta”, afirma.
Hergesel destaca também o fator nostálgico como uma estratégia interessante na mídia audiovisual. “O SBT resolveu apostar nisso: resgatou programas do passado e passou a exibi-los no original, sem remakes ou adaptações. Em números de audiência, pode não ter resultado no mesmo índice gerado pelos programas inéditos, mas é visível que os fãs da emissora – em especial os fãs do Silvio Santos – são presenteados”.
As reprises, portanto, teriam um papel central no fortalecimento de um dos pilares do SBT: a afetividade com a emissora. “As reprises nos indicam que a emissora não quer (nem pode) se desprender da imagem de Silvio, assim como respeita sua história e se orgulha do conteúdo que produziu nesses 40 anos. Penso que esse tipo de homenagem estará sempre presente, em especial quando o Silvio não estiver mais entre nós, para que sua imagem esteja sempre ativa na memória do telespectador”, conclui Hergesel.
E é essa característica afável do SBT – a proximidade entre profissionais e público, por exemplo, em seus programas de auditório – que a faz ter “torcida”. Rafael Fialho relembra, por exemplo, que o SBT apostou durante anos na relação com os SBTistas, a partir de competições como gincanas e visitas à sede da emissora. “Em minha pesquisa sobre os SBTistas, notei que o pilar central da identidade do SBT era a figura do Silvio Santos, além da relação com a trajetória de vida com cada um. Os entrevistados me diziam que na infância, viam Eliana, na adolescência, passaram a ver o Serginho Groisman, e depois de adulto, passaram a ver as novelas e o Jô Soares. O SBT acompanhava a narrativa de vida dessas pessoas”, explica.
Vale lembrar que essa relação afetiva é tão forte que os próprios pesquisadores possuem essa proximidade com seu objeto de estudo: Rafael Fialho já participou da plateia do Casos de Família e João Paulo Hergesel esteve no Roda a Roda da Jequiti. São elementos que fortalecem a ideia de que o diferencial do SBT é justamente ser menos empresa, e mais família.
Rafael Fialho arremata: “para mim, a principal contribuição do SBT foi essa ousadia, essa variação desse modelo televisivo, com uma proposta de interação com o público. O SBT queria ser a pessoa diferente: o primo pobre da TV brasileira, mas que era mais feliz. Era a emissora com uma ligação mais direta com o público, mediada pelo afeto, e com a ousadia de tentar coisas diferentes”, conclui.