A série Rei da TV, da Star+, busca retratar – de forma assumidamente livre e jocosa – a trajetória de Silvio Santos na construção de seu império de comunicação. O SBT, ainda que tenha sido sempre cercado por incontáveis críticas quanto à qualidade de sua programação, é resultado da obstinação de um homem astuto e bem articulado, inclusive com a política.
Em determinada cena, Silvio Santos e seus assessores descobrem que o presidente João Figueiredo abriria em breve uma nova rodada de concessões para os canais de TV brasileiros. Eles resolvem então “cortejar” o militar para conseguir entrar na disputa. São recebidos por um político que vê o caráter popular dos programas do apresentador como algo de péssimo gosto, que se afasta dos valores esperados para a família brasileira. Não há chances para que Silvio consiga sua tão sonhada emissora. A não ser, claro, que ele dê um jeitinho.
A cena é bastante sintomática pois faz um retrato lúdico de algo que tem extrema importância para a sociedade brasileira: as formas pelas quais as emissoras de televisão e rádio foram (e ainda são) reguladas no país. O que nem todo mundo sabe é que estes canais são de propriedade do governo, e não dos donos das empresas, que adquirem a concessão provisória para explorar aquele espaço em determinado tempo, caso cumpram todas as regras estabelecidas pela lei.
Ao longo de quatro anos, o presidente Jair Bolsonaro ameaçou retirar a concessão da TV Globo toda vez que ia ao ar alguma reportagem que, em sua visão, o prejudicava. No dia 5 de outubro de 2022, venceu a concessão de 15 anos da TV Globo. Contudo, as falas do presidente, ainda que intempestivas, pareciam apontar a algo importante: ao fato de que as concessões de TV e rádio brasileiras foram concedidas, na maior parte das vezes, por processos obscuros, de maneiras que prezavam pouquíssimo pela idoneidade e transparência.
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Nesta reportagem, tratamos sobre como funcionam as concessões brasileiras e quais eram as possibilidades de não renovação da concessão da Globo ou de quaisquer emissoras. Para isto, escutamos dois especialistas: o advogado e professor Carlos Ari Sundfeld, da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público, e que é um dos autores da Lei Geral de Telecomunicações; e o jornalista Laurindo Lalo Leal Filho, professor aposentado da USP e uma das grandes autoridades brasileiras nos estudos sobre TV pública.
A TV brasileira é nossa

Não é de conhecimento geral da população que as emissoras de TV e rádio são, na verdade, concessões temporárias cedidas pelo estado para que algumas empresas explorem estes espaços. Teoricamente, para obter uma concessão, é necessário obedecer a uma série de regras – estabelecidas pelo Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962 – e segui-las à risca.
O espaço das telecomunicações é limitado por uma série de razões, sendo o mais evidente a questão física. O professor Laurindo Lalo Leal Filho explica: “a regulamentação é fundamental, pois o espectro eletromagnético das telecomunicações é público e finito. Há uma necessidade até física de ele ser regulado, porque cabe ao estado definir as formas pelas quais o estado ou particulares nomeados por ele irão utilizar este espaço”.
Na sua opinião, todo este processo não é evidenciado com transparência pelas próprias emissoras, que não têm interesse nisso. É por isso que muita gente segue achando, por exemplo, que a família Marinho é “dona” do canal da Globo.
Outro aspecto que também contaminou a forma pela qual a comunicação eletrônica se espalhou no Brasil, por meio de relações pouco transparentes entre empresários e governo, está no que Leal chama de “vício de origem”. Ou seja: com a chegada da TV no Brasil, em 1950, entendeu-se que os donos de concessionárias de rádio deveriam receber também emissoras de televisão. Com isto, foi-se moldando uma comunicação de massa restrita a pouquíssimos grupos.
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O professor Carlos Ari Sundfeld explica como se deu esse processo: “até a metade da década de 1990, todas as concessões de radiodifusão (nos primeiros anos, só de rádio; a partir do início dos anos 1950, também de televisão) tiveram origem em decisões políticas. As concessões atuais são meras sucessoras dessas velhas concessões”.
“Se, desde o início, o sistema de outorga tivesse sido totalmente impessoal, por meio de licitações muito objetivas, provavelmente diminuiria um pouco a politização”
Carlos Ari Sundfeld
As razões para que as coisas tenham se estabelecido assim no Brasil são, mais uma vez, políticas. Um dos grandes problemas é, segundo Laurindo Lalo Leal, que o código de 1962 foi elaborado pelas próprias empresas concessionárias de TV, e não pelo governo. Com isto, foi aprovado um código que era totalmente favorável aos interesses da iniciativa privada.
“O dado histórico importante é que, na época, o presidente era João Goulart, e ele apresentou 52 vetos a esse projeto de código. Só que a força dos radiodifusores era tão grande e o poder do presidente não era tão forte, que os radiodifusores conseguiram derrubar os 52 vetos e aprovar o código como estava. É por isso que ele favorece os interesses particulares dos concessionários em detrimento dos interesses do estado brasileiro, que tem que falar em nome da sociedade”, explica Leal.
Por conta disso, todo o processo de instalação das emissoras foi pouco claro e muito voltado às influências políticas de empresários poderosos. “Se, desde o início, o sistema de outorga tivesse sido totalmente impessoal, por meio de licitações muito objetivas, provavelmente diminuiria um pouco a politização. Mas não acabaria com ela. Isso porque os veículos de comunicação, incluindo os jornais em sua época áurea, sempre foram instrumentos da política partidária”, complementa Carlos Sundfeld.
Quais as consequências disso?

Segundo os dois professores, o sistema de concessões de rádio e TV no Brasil é antiquado e já não dá conta do mercado de radiodifusão. Para que houvesse uma melhoria, seria necessária uma reforma – o que não parece estar dentro do horizonte político brasileiro.
“Uma boa reforma teria de impedir essa contaminação. Mas uma reforma assim parece cada vez mais inviável politicamente. Assim, a grande reforma no Brasil tem de ser a diminuição da pobreza, que ampliará o acesso ao digital e a conteúdos variados”, pontua Carlos Sundfeld. Mesmo que decadente, o sistema de radiodifusão deve ainda durar por muitos anos, uma vez que este é um país com população empobrecida, ainda muito dependente dos veículos abertos, como rádio e televisão.
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“São 100 anos de rádio e 72 anos de televisão, um período muito longo que estas camadas controlam a circulação das mesmas ideias”
Laurindo Lalo Leal Filho
Umas das consequências mais nocivas de tudo isto é que, no Brasil, a comunicação de massa em meios eletrônicos criou desde cedo contornos pouco democráticos. Segundo revelado por matéria da revista Carta Capital, cinco famílias controlam 50% dos principais veículos de mídia do país – concretizando o que se chama de propriedade cruzada, que é proibida, por exemplo, nos Estados Unidos.
Por conta disso, as mídias permaneceram nas mãos de pouquíssimas pessoas. “A consequência política disso é que você tem, diferente de outros países, uma circulação de ideias na sociedade organizada e difundida por esses meios eletrônicos praticamente homogênea, sem pluralidade”, afirma Laurindo Lalo Leal Filho.
As visões de mundo que circulam nas emissoras, por exemplo, são muito próximas entre si. Leal complementa que isto pode ser notado a partir de um exemplo clássico: “você pega os telejornais e nota que as pautas são sempre as mesmas. Mudam os apresentadores, o cenário, mas não se oferece à sociedade alternativas de pauta, de visões de mundo, de olhares para diversos fatos políticos, culturais, sociais, etc”.
Este olhar sobre a realidade, portanto, é reflexo da posição de classe que esses controladores dos meios de comunicação têm. “São 100 anos de rádio e 72 anos de televisão, um período muito longo que estas camadas controlam a circulação das mesmas ideias. Isto é, na verdade, herança do coronelismo brasileiro, da sociedade escravocrata, que vai perpetuando a mesma ideia de uma sociedade estratificada e imutável do ponto de vista da participação de camadas maiores da população”, completa.
E como poderia ser?

Um dos caminhos para que se tivesse um sistema de comunicação de massa mais plural e democrático no Brasil seria um fortalecimento da comunicação pública – o que deveria ser feito pelas emissoras públicas de rádio e TV. Mas, diferente de outros países, este sistema nunca chegou a se desenvolver bem no Brasil.
O exemplo mais tradicional da TV pública bem-sucedida é a do Reino Unido, com o caso famoso da BBC. Mas a experiência de radiodifusão britânica vai muito além da famosa emissora pública. Laurindo Lalo Filho conta que teve a oportunidade de acompanhar, durante seu pós-doutorado, o processo de concessão do terceiro canal privado do Reino Unido. Isto foi feito por uma razão específica: o governo avaliou que havia uma camada da população que ainda não estava sendo atendida, e abriu então um projeto de licitação.
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Ele explica como funcionava o processo: “os dois critérios fundamentais eram: o pagamento do aluguel (pecuniário), que envolvia um leilão com lances; e a avaliação de um projeto de programação que seria analisado para atingir o objetivo da concorrência”. O projeto ainda contemplava vários detalhes necessários à futura emissora: quantas horas seriam dedicadas ao jornalismo, à programação infantil, à cobertura internacional.
O mais curioso, segundo o professor Leal, é que o grupo que ganhou a concorrência não foi o que deu o lance mais alto, mas o que atingiu melhor as exigências do projeto licitatório. “Por trás disso, está a ideia de que radio e televisão podem até serem empreendimentos comerciais, mas a prioridade não é vender anúncio, e sim atender a necessidades do público. Isto é um princípio fundamental para todo processo de concessão. E tudo isto é discutido abertamente com a sociedade em audiências públicas”. É exatamente o oposto do que acontece no Brasil, onde as emissoras nem ao menos são reconhecidas como concessões do estado.
O que falta para que a TV pública seja forte no Brasil?

Para entender por que as emissoras públicas não são tão fortes no Brasil, novamente, voltamos a questões históricas. Aqui, o sistema comercial foi o mais impulsionado desde o início – diferente do que ocorreu, como já dissemos, no Reino Unido.
Mas isso poderia mudar? A resposta é sim. Contudo, isto depende de muito investimento e de vontade do estado. Laurindo Lalo Leal Filho esclarece que a primeira emissora pública nacional com características semelhantes às europeias foi a TV Brasil, criada em 2007, no final do governo Lula. “A ideia era de ser uma TV independente do estado, administrada por um conselho curador formado por representantes da sociedade. Mas isso durou pouco, foi até o golpe contra a Dilma. Um dos primeiros atos de Michel Temer foi acabar com o caráter pública da TV Brasil, e hoje ela é uma emissora de propaganda do governo federal”, pontua.
“O grande problema da TV Brasil é que ela não era acessível ao público. A TV pública precisa estar a um clique da Globo, pois aí ela consegue concorrer”
Laurindo Lalo Leal Filho
Uma matéria recente de Daniel Sousa, do UOL, menciona que o futuro presidente Lula teria planos de retomar a proposta original da TV Brasil e torná-la uma “BBC brasileira”. Para Leal, isso seria importantíssimo, pois uma TV pública sólida é um dos principais caminhos para a democratização da comunicação.
“A TV Cultura é o modelo mais próximo que temos do modelo europeu, pois ela funciona dentro do guarda-chuva da Fundação Anchieta, de direito privado, então o estado não pode interferir. Ela é autônoma, embora receba recurso público. O problema é que, ao longo do tempo, principalmente pelos mais de 30 anos de governo do PSDB em São Paulo, ela foi ocupada por interesses políticos”, explica.
Mas para que a experiência de TV pública dê certo no país, é preciso garantir que ela tenha condições de concorrer com as TVs comerciais – o que não significa necessariamente disputar audiência, mas sim competir em qualidade e diversidade da programação.
“O grande problema da TV Brasil é que ela não era acessível ao público. Por anos, em São Paulo, o sinal não pegava direito. A TV pública precisa estar a um clique da Globo, pois aí ela consegue concorrer. Quando ela acabou com o golpe, ninguém foi reclamar. Já na Inglaterra, quando a Margareth Thatcher ameaçou privatizar a BBC, a população reagiu. Então a TV pública precisa ser protegida pela sociedade; mas para isso, ela precisa ser acessível”, conclui Leal.
Já Sundlfeld opina que o sucesso da TV pública no Brasil dependeria de uma espécie de “blindagem” garantida pelo estado, o que envolveria recursos garantidos com autonomia financeira absoluta e escolha de dirigentes sem nenhuma influência partidária. “Sendo realista, é pouco viável sonhar com isso”, afirma.
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As ameaças de Bolsonaro

Por fim, retomamos a uma das questões iniciais: as bravatas emitidas por quatro anos pelo então presidente Jair Bolsonaro ameaçando não renovar a concessão da Globo. Mas realmente havia a possibilidade de que isto acontecesse?
O professor Carlos Ari Sundfeld explica que a medida era politicamente inviável. “A Constituição de 1988, em seu artigo 223, tem 3 regras que protegem as concessionárias de radiodifusão contra uma medida arbitrária de cassação ou de não renovação da concessão, que venha a ser adotada pelo Poder Executivo: eventual não renovação da concessão, mesmo se fosse decidida pelo Executivo, necessariamente dependeria da aprovação de, no mínimo, 2/5 do Congresso Nacional, em votação nominal; o ato de renovação somente produziria efeitos legais após essa deliberação do Congresso Nacional; e o cancelamento da concessão, antes de vencido o prazo, dependeria de decisão judicial”, esmiuça.
Laurindo Lalo Leal Filho diz que era praticamente impossível que não houvesse a renovação. O primeiro ponto é que o próprio congresso nacional jamais se arriscaria se posicionar contrário a um tema desses. ”Imagine que uma concessão vá para plenário para ser julgada. Será que é possível que 2/5 dos parlamentares votem contra a concessão da Globo, por exemplo? Seria um suicídio político. Por mais bravatas que Bolsonaro fizesse, ele não teria condições de aprovar a não renovação das concessões”, arremata.
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