Para espanto de muitos, o “programa sobre nada” chega à sua vigésima edição. Aos trancos e barrancos, sob fortes críticas e sob a proteção de fãs devotos, Big Brother Brasil estreia hoje sua temporada número 20 cercado de dúvidas: será que a edição recuperará o mau desempenho da anterior? Há fôlego – na audiência e no formato – para mais anos de um programa de convivência, no qual a matéria prima é, basicamente, a interação humana? E 19 anos depois do começo do BBB, ainda vale a pena “vender-se” para um reality show?
O fato é que, querendo ou não, Big Brother Brasil é um marco na TV mundial, pois trouxe à tona a um público global um material barato, simples e, para boa parte da plateia, irresistível: a autenticidade da vida humana, ou ao menos a expectativa dela. Mesmo que esta seja a “casa mais vigiada do Brasil”, quando assistimos a um programa desse estilo, procuramos justamente por aqueles minúsculos momentos em que os participantes esquecem que estão perante as câmeras e começam a ser eles mesmos.
Tudo isso nos leva a um paradoxo: quase duas décadas depois, há ainda algum tipo de autenticidade no programa, ou já somos todos experts da representação em escala nacional? E 19 anos depois – com a ascensão das redes sociais e da visibilidade (não necessariamente positiva) que elas trazem – ainda está valendo a pena viver este sonho coletivo que é tornar-se um brother? São estas as questões que investigamos aqui.
Um formato inesgotável
Aqui, uma tentativa de explicação sintética para quem viveu fora deste planeta nas últimas décadas: Big Brother é um formato de programa estilo reality show (ou seja, sustentado na premissa última de que emite a realidade, e não uma ficção engendrada por produtores televisivos) de propriedade da empresa holandesa Endemol e que há reproduzido em mais de 20 países. Sua estrutura é simples: um grupo de pessoas são confinadas numa casa e isoladas do mundo externo. Lá, precisam apenas interagir e participar de provas estipuladas pelo programa. Ao fim de uma semana, o público vota e decide qual participante permanece e qual sai.
O professor Fernando Andacht, da Universidad de La República (Uruguai), estudou por muitos anos o formato, em vários países do mundo – ele veio morar e trabalhar no Brasil em 2002 justamente no início do primeiro BBB. Para o pesquisador, o formato do programa se baseia na “ilusão de espontaneidade”. “Nestas quase duas décadas de produção do BBB, a criatividade está sempre na produção e nos especialistas do comportamento – psicólogos, sociólogos, antropólogos – que trabalham para criar um entorno capaz de produzir ainda hoje, quando começará a 20a edição do formato, isso que na literatura, o semiólogo Roland Barthes chamou de ‘efeito do real’, ou seja, atitudes, gestos, palavras, silêncios, a produção de verossimilhança para encenar a comédia humana que conhecemos como vida cotidiana inserida num ecossistema completamente artificial”, explicou à Escotilha.
Deste modo, a longevidade do programa se relaciona com um fenômeno que vai além dele, e diz respeito também ao interesse que temos em acompanhar a vida dos outros em redes sociais, ou seja, de consumir “signos narrativos capazes de interessar a pessoas que não sejam apenas do círculo íntimo, familiar”. Esta estrutura narrativa, baseada na exibição (e posterior edição) da vida corriqueira encenaria o que o professor Andacht chamou em seus estudos de “melocrônica”, uma narrativa “capaz de produzir a paixão espectadora associada à novela das 9”.

Desse modo, é possível dizer que o programa permanece interessante pois sua base de funcionamento não muda: ele centraliza na captura, por parte do público, do que Andacht chamou de index appeal, ou seja, o conjunto de signos emitidos pelo corpo de modo involuntário (suor, choro, rubor, vermelho de raiva), em contraste com os signos dados de modo ciente, como a fala”, e na narrativização destes signos em uma história cheia de elementos melodramáticos (como os papéis marcados de vilões e mocinhos).
Mesmo que esta seja a ‘casa mais vigiada do Brasil’, quando assistimos a um programa desse estilo, procuramos justamente por aqueles minúsculos momentos em que os participantes esquecem que estão perante as câmeras e começam a ser eles mesmos.
Além disso, o formato deste tipo de reality show tem forte adequação ao meio televisivo, pois se centra na exibição de uma imagem “briga” com outros elementos discursivos (como a fala dos participantes, a fala do apresentador, a edição feita pela produção) tornando os espectadores quase como se fossem detetives em busca da verdade. “Assim, há sempre um contraste forte entre a imagem – os ícones que cada mulher e homem traz como parte vital de sua experiência de confinamento observado – e os indícios que se produzem, queiram eles ou não, como o resultado direto da interação, o produto das ilusões e dos desapontamentos que acontecem nesse lugar o tempo todo”, complementa Andacht.
Experts em BBB?
Mas se o gênero do programa se baseia na exibição de momentos autênticos, e os novos participantes já têm 19 anos de “experiência” em BBB, tem ainda como ser divertido? Para Maurício Stycer, crítico de televisão e repórter do portal UOL, o sucesso do programa levou à formação de “bebebólogos”, e isso gera um desafio à produção. “É gente com enorme conhecimento acumulado sobre a dinâmica do programa, que é muito simples, por sinal. Assim, o que é uma das causas do sucesso do BBB, a facilidade com que o programa é compreendido pelo espectador, se vira contra a produção ao se tornar previsível. É um problema sério porque as mudanças são necessárias, mas não podem ser drásticas a ponto de quebrar esta relação de intimidade que o público tem com o reality”.
Essa expertise em Big Brother pode ser uma das razões que levou ao fracasso da edição de 2019. “Na minha opinião, o fracasso da edição anterior se deve, em primeiro lugar, à seleção dos participantes. A ideia de promover um confronto entre ‘engajados’ e ‘alienados’ nos primeiros meses do governo Bolsonaro foi um desastre”, pontua Stycer. Para o jornalista, o excesso de consciência dos participantes sobre a visibilidade do programa acarretou em uma edição fraca. “Creio que muitos participantes buscaram preservar suas imagens, pensando em acumular seguidores nas redes sociais, e deixaram de lado a arena de disputas que é o próprio programa. Como superar isso em 2020? Por mais experientes que sejam os produtores de elenco do BBB, o resultado da seleção tem sempre uma dose de imprevisibilidade. É muito difícil”, explica.
Segundo o professor Fernando Andacht, houve, ao longo dos anos, uma assimilação das regras fundamentais da performance esperada ao Big Brother, fazendo com que o “léxico” do BBB se naturalizasse entre os seus participantes – o que concordaria, portanto, ao argumento de Maurício Stycer sobre as razões do fracasso da edição de 2019. Ainda assim, pode-se dizer que a essência continua a mesma. “O objetivo que parece impossível mas que é exigido e necessário para continuar na casa é narrar a própria vida, como Sheherazade (a personagem de As mil e uma noites que contava histórias para sobreviver), através de fragmentos alheios, expropriados de sua (in)voluntária apresentação do si próprio na vida quase-cotidiana”.
O paranaense Cézar Lima foi o vencedor do BBB 15, em 2015. Durante a edição, Cézar se apresentava aos colegas como uma espécie de especialista no programa – ou um “bebebólogo”, no termo usado por Maurício Stycer. De fato, o brother havia tentado entrar no reality show por 11 vezes. “Esse objetivo nasceu por volta dos meus 15 anos, e acredito que foi preponderante na minha vida, pois me fez projetar para me tornar um candidato atraente aos olhos dos diretores/seletores do elenco, na minha concepção”, contou à Escotilha. “Fui estudar (cursei economia e direito), fiz vários cursos de oratória, equilibrei a parte física e intelectual. Assistia a todas as edições na condição de fã, desenvolvendo o objetivo de um dia migrar do meu sofá, para o sofá da casa mais vigiada do Brasil”, explica.

Cézar acredita, porém, que sua estratégia foi mais intuitiva. “Quando veio a oportunidade, procurei pensar no que não fazer, no que não dizer, e deixar fluir realmente minha essência. Quando concretamente tive contato com o elenco, meus concorrentes ao prêmio, aí sim foi preponderante para optar pelo estilo de jogo, naquela circunstância percebi que era mais interessante o jogo individual”, comenta. Para Cézar Lima, a opção por não se unir a grupos no programa foi importante. “No isolamento transpareceram mais minhas características pessoais, essas que o público se identificou e me fez o vencedor daquela edição”.
Strip-tease emocional
Na semana passada, um documentário veiculado pelo portal UOL, intitulado O lado B do BBB, trouxe uma perspectiva interessante à reestreia do programa. Nele, cinco ex-participantes são entrevistados e falam sobre o que ocorre em suas vidas após a saída do programa. Todos revelam ter sofrido algum tipo de prejuízo, mais ou menos grave: um diz que sua participação não lhe rendeu tanto dinheiro quanto imaginava, outra lamenta ter ficado conhecida nacionalmente pelo transtorno alimentar que revelou na casa, e uma atriz imagina que, se não tivesse entrado no reality, talvez hoje tivesse uma carreira consolidada.
No entanto, mesmo após quase duas décadas, há ainda milhares de brasileiros sonhando com essa oportunidade. Mas que oportunidade é essa, e quais são os riscos? Segundo o psicólogo Flávio Voight, há um desejo de existência nas pessoas que resolvem se candidatar a programas como esse. “É mais uma questão de existir ou não existir do que ter uma imagem arriscada. Você pode arriscar a boa vontade das pessoas a seu respeito, mas você passa a ter uma imagem. Você existe a partir do momento que você é visto – quanto mais visto, mais você existe. Em um mundo em que as pessoas se veem muito pouco, se sentem muito invisíveis, é mais uma questão de arriscar a ter uma imagem e existir do que sentir que tem uma imagem e que pode perdê-la”, explica.
‘Em um mundo em que as pessoas se veem muito pouco, se sentem muito invisíveis, é mais uma questão de arriscar a ter uma imagem e existir do que sentir que tem uma imagem e que pode perdê-la’.
Ao final do programa O lado B do BBB, os cinco entrevistados dizem que, mesmo com todos os danos que tiveram que arcar ao sair da atração, aceitariam entrar novamente na casa. Alguns dizem que “não tem nada a perder”, o que corrobora com a visão de Voight. “O ser humano precisa muito de uma sensação de fechamento. Ou seja, quando passa por uma situação difícil, ela gostaria de sentir que viveu até a melhor situação possível. A pessoa pode ter algo a perder, mas ela tem a esperança que desta vez ela não vai perder: dessa vez eu vou ter valor. A mesma sensação de falta de visibilidade que leva a pessoa participar uma vez possivelmente a leva a participar uma segunda. É o mesmo mecanismo por trás de qualquer insistência atrás da repetição de uma atividade ruim”, explica.
Portanto, esse desejo pela visibilidade a todo custo, refletido no programa, seria algo que extrapola os limites da televisão, e diz respeito ao mundo social. “É que nós nos vemos pouco como sociedade e muito como indivíduo. Você passa a ter valor quando você se destaca da sociedade e não quando você é uma parte integrante dela. Isto diz muito sobre como nós damos pouco valor a quem não tem visibilidade, a quem escapa do olho alheio. Se você é visto, você existe, se você não é visto, não importa o que você faça, ou quanto o seu trabalho seja transformador, você existe menos”.
Por isso mesmo, é redutora a ideia de que os participantes negociem sem querer a sua privacidade – vale lembrar que big brother do título do programa faz referência ao livro 1984, de George Orwell, que imagina um futuro distópico em que o governo espia toda a população por meio de uma tecnologia instalada em todos lugares e chamada de “grande irmão”. Para Voight, “não é necessariamente que você abra mão de sua privacidade, mas sim que você quer que sua privacidade seja vista, porque aí você terá validação apenas de algo externo, mas de algo que pretensamente é interno também. Tudo se resume à mesma questão: eu só sinto que existo quando sou visto”, pondera.
O jornalista Maurício Stycer, responsável pelo especial do UOL, acredita que o programa incita o sonho da fama e a ambição de ganhar dinheiro. “Nos dias atuais, com tanta exposição em redes sociais, essa expectativa é ainda maior. As pessoas não medem as consequências para alcançar esses objetivos, o que acho surpreendente. Participar de um reality show como o BBB é uma espécie de strip-tease emocional elevado à máxima potência. Não tem como ser bom para a maioria das pessoas. Mas todos que entrevistamos dizem que fariam tudo de novo”.
Ou seja: mesmo os vencedores do programa identificam que há, sim, perdas pessoais em topar este tipo de empreitada, e que elas precisam ser ponderadas. Cézar Lima, ganhador do BBB 15, revelou algum arrependimento por não ter investido tanto na sua carreira como comunicador. “Acredito que a única questão mesmo que ficou foi uma pequena frustração comigo mesmo por não ter focado mais nas mídias sociais, principalmente canal do YouTube e continuar concedendo aquele entretenimento que o público gostou dentro do programa. Investi minha energia em ir atrás de uma inserção na TV e não fiquei tanto naquilo que eventualmente me traria mais realização, a continuidade daquilo que gosto, que é fazer comunicação de massa”, explica.
Estreia
Cercada de fortes expectativas sobre o futuro do programa, a icônica edição 20 do Big Brother Brasil estreia hoje e vai ao ar todos os dias na Globo, após a novela Amor de mãe.