2019 mal começou e já tem sido um ano difícil para os reality shows. No Brasil, o BBB 19 parece ter escolhido mal seu elenco e não tem conseguido gerar uma narrativa interessante ao público, uma vez que há poucos conflitos entre os brothers. Já no Troca de Esposas, da Record, uma participante reclamou publicamente da edição mal-intencionada que busca encaixá-la num papel marcado. Em suma, há sinais aqui de que o formato reality – baseado exatamente na “realidade”, ou seja, na explosão de uma instantaneidade incontrolada pela emissora – dá sinais de desgaste depois de tantos anos de exploração.
Este prelúdio serve para falar da última temporada de um dos reality shows mais queridos do mundo: falo de RuPaul’s Drag Race em sua versão especial, o All Stars. Trata-se de uma competição ao estilo greatest hits: algumas das drags participantes dos programas anteriores são convidadas para uma nova competição, como se fosse uma espécie de duelo entre gigantes. Atualmente, o All Stars está em sua quarta temporada, enquanto o RPDR original prepara-se para o seu 11º ciclo.
No All Stars, são 10 competidoras escolhidas a dedo por RuPaul e sua equipe, num programa totalmente planejado para agradar os verdadeiros fãs do reality, os que consomem tudo aquilo que é lançado e que querem mais do que uma experiência televisiva. Sendo assim, todo ano há uma forte expectativa para saber quem será o elenco do All Stars.
Na quarta temporada, RuPaul tomou algumas decisões óbvias e algumas um tanto inusitadas: trouxe de volta personagens do ciclo anterior, o décimo (a dupla Monét X Change e Monique Heart); algumas personagens muito queridas e consideradas injustiçadas (Valentina, que tem um fandom gigantesco e foi eliminada num episódio histórico em que se recusou a fazer um lip sync sem máscara); outras de pouca expressividade (Jasmine Masters) e outras que parecem ter sido escaladas por seu potencial para se tornarem vilãs (Gia Gunn, que se assumiu transexual depois de passar pelo programa). Além disso, surpreendeu a todos ao trazer novamente duas drags que participavam de sua terceira temporada: a filipina Manila Luzon (da terceira temporada e All Stars 1), e Latrice Royale, uma das mais adoradas participantes de RPDR (da quarta temporada e também de All Stars 1).
All Stars 4 se encerra com uma sensação de uma boa ideia que ainda não soube ser bem executada.
Tinha tudo para dar certo – e, ironicamente, a temporada foi bastante fraca, decepcionante mesmo. Em certos episódios, era necessário esforço para ir até o final. Explico: o formato do programa é propositadamente engessado, e os desafios se repetem em cada ciclo. Há sempre as mesmas competições, por exemplo, o episódio de stand-up comedy, aquele no qual as participantes transformam outra pessoa numa “irmã drag”, e o sempre esperado “The Snatch Game”, quando as queens personificam uma celebridade. Tudo isto já é esperado, por elas e por nós. A repetição, portanto, não é o problema em si. Então qual foi o problema deste All Stars 4?
Listo uma série de razões que creio que desgastam o formato de All Stars, que mantém diferenças com o programa original. A mais forte delas, penso, é a mais polêmica, e que cria uma dificuldade e uma oportunidade ao programa. Diferente do RPDR padrão, a eliminação no All Stars ocorre por uma dinâmica reversa: no programa original, é RuPaul que escolhe as duas piores competidoras e decide quem vai para casa; na edição especial, RuPaul escolhe as duas melhores, e elas precisam decidir quem vai deixar o programa.
Por um lado, a estratégia parece interessante, pois dá margem a discussões de fundo ético, já que as drags precisam discutir e expor quais os critérios que usarão para sua escolha. O dilema moral mais evidente seria: é mais justo eliminar a participante mais fraca, por mérito, ou a mais forte, para eliminar a competição e garantir uma trajetória mais tranquila no programa? As discussões sobre isso costumam ser produtivas e trazem reflexões pertinentes, além de conseguir instalar a intriga (algo fundamental para todo reality show, diga-se de passagem).
No entanto, a estratégia leva a uma distorção: por vezes, as melhores candidatas são eliminadas no meio do caminho, deixando os fãs irritados e colocando uma sensação de injustiça no ar. É mais ou menos o que ocorre em programas como BBB – por vezes, o público elimina os melhores personagens da trama, “estragando” a temporada. No All Stars 4, a eliminação inesperada de Manilla Luzon, que tinha mais vitórias que todas as demais queens, levou o programa a um caminho inesperado e a uma sensação de temporada frustrada, como se tivéssemos perdido boa parte da possível diversão do programa.
Esta foi, ao meu ver, uma temporada marcada por decepções. A mais forte dela talvez tenha sido Latrice Royale, que é uma das queens mais carismáticas de todas as temporadas (ela é uma ex-presidiária que foi salva pela arte drag), e saiu do All Stars dando a sensação de ter enfraquecido seu legado. Seu desempenho era quase sempre fraco, sugerindo pouco esforço, e suas falas fizeram parecer que Latrice simplesmente confiou no amor que conquistou entre os fãs. Coisa semelhante ocorreu a Valentina que, belíssima, era uma promessa não concretizada, pois saiu muito cedo de sua temporada original – e não conseguiu mostrar muito mais em All Stars. Farrah Moan apenas chorou nos poucos episódios que apareceu, e Gia Gunn foi apenas maledicente (ou ao menos assim foi editada). Em suma, muitas participantes perderam seu “capital drag” nesta temporada.
Por fim, a temporada se encerrou de uma forma um tanto frustrante, com uma final burocrática (o fato de que os possíveis finais são gravados, de modo que as participantes não saibam quem ganhou até o episódio ir ao ar, acentua a sensação protocolar da celebração). Trouxe uma impressão de constrangimento ao coroar duas participantes de desempenho diferente – muito se especula de que a coroação dupla a Trinity the Tuck e Monét X Change se deu por razões de cunho político, como uma resposta às acusações de racismo que o programa. De todo modo, All Stars 4 se encerra com uma sensação de uma boa ideia que ainda não soube ser bem executada.